A seguir, apresentamos alguns trechos da Carta do Santo Padre Francisco sobre o papel da Literatura na Educação, publicada em 17 de julho do ano 2024.
“A literatura […] brota da pessoa no que tem de mais irredutível, no seu mistério […] É a vida que se torna consciente de si mesma quando, utilizando todos os recursos da linguagem, atinge a plenitude da expressão” (LATOURELLE, R. Letteratura [in] LATOURELLE, R. & FISICHELLA, R. Dizionario di Teologia Fondamentale. Assis, 1990). De uma forma ou de outra, a literatura tem a ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta, com as suas tensões essenciais, com os seus desejos e os seus significados (n. 5-6).
Inculturação do Evangelho. Para um crente que deseja sinceramente entrar em diálogo com a cultura do seu tempo ou, simplesmente, com a vida de pessoas concretas, a literatura torna-se indispensável […] Ela inspira-se na cotidianidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como “a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida” (RAHNER, K. Il futuro del libro religioso [in] Nuovi Saggi II. Roma, 1968).
[…] A missão eclesial soube desenvolver toda a sua beleza, frescura e novidade no encontro com diversas culturas – e muitas vezes graças à literatura – nas quais se enraizou, sem medo de arriscar e de extrair o melhor daquilo que encontrou. É uma atitude que a libertou da tentação da autorreferencialidade ensurdecedora e fundamentalista que consiste em acreditar que uma certa gramática histórico-cultural tem a capacidade de exprimir toda a riqueza e profundidade do Evangelho (Evangelii Gaudium, EG 117).
[…] Graças ao discernimento evangélico da cultura, é possível reconhecer a presença do Espírito nas diversas realidades humanas, ou seja, é possível captar a semente da presença do Espírito já plantada nos acontecimentos, sensibilidades, desejos, tensões profundas dos corações e dos contextos sociais, culturais e espirituais (n. 8-12).
O problema da fé em nossos dias. “O regresso ao sagrado e a busca espiritual, que caracterizam a nossa época, são fenômenos ambíguos. Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne” (EG 89) […] O recurso assíduo à literatura pode tornar os futuros sacerdotes e todos os agentes pastorais ainda mais sensíveis à plena humanidade do Senhor Jesus, na qual se derrama toda a sua divindade, e anunciar o Evangelho de tal modo que todos, realmente todos, possam experimentar como é verdadeiro o que diz o Concílio Vaticano II: “na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente” (Gaudium et spes, GS 22) (n. 15).
O problema da fé nos dias de hoje não é, em primeiro lugar, o de acreditar mais ou acreditar menos em proposições doutrinais. Liga-se antes à incapacidade de tantos se comoverem perante Deus, a sua criação e os outros seres humanos. Por conseguinte, abre-se aqui a tarefa de curar e enriquecer a nossa sensibilidade. Por isso, no regresso da minha Viagem Apostólica ao Japão, quando me perguntaram o que é que o Ocidente tem a aprender com o Oriente, respondi: “creio que falte ao Ocidente um pouco de poesia” (Conferência de imprensa durante o voo de regresso da Viagem Apostólica de Sua Santidade Francisco à Tailândia e ao Japão, 26/novembro/2019) (n. 22).
As palavras do poeta, escreve Rahner, estão “cheias de saudade”, são “portas que se abrem para o infinito, portas que se escancaram à imensidão. Evocam o inefável, tendem para o inefável”. A palavra poética “olha para o infinito, mas não pode dar-nos este infinito, nem pode trazer ou esconder em si Aquele que é o Infinito”. Efetivamente, isto é próprio da Palavra de Deus, e – continua Rahner – “a palavra poética invoca, portanto, a Palavra de Deus” (RAHNER, K. La fede in mezzo al mondo. Alba, 1963). Para o cristão, a Palavra é Deus, e todas as palavras humanas mostram traços de uma intrínseca saudade de Deus, tendendo para essa Palavra (n. 24).
A Palavra e as palavras. Na verdade, a nossa visão ordinária do mundo é como que “reduzida” e limitada pela pressão que os objetivos operacionais e imediatos do nosso agir exercem sobre nós. O próprio serviço – cultual, pastoral, caritativo – pode tornar-se um imperativo que orienta as nossas forças e a nossa atenção apenas para os objetivos a alcançar. Mas, como nos recorda Jesus, na parábola do semeador, a semente precisa de cair em terra profunda para amadurecer frutuosamente ao longo do tempo, sem ser sufocada pela superficialidade ou pelos espinhos (cf. Mt 13, 18-23). Assim, o risco passa a ser o cair na busca duma eficiência que banaliza o discernimento, empobrece a sensibilidade e reduz a complexidade. Por isso, é necessário e urgente contrabalançar esta inevitável aceleração e simplificação da nossa vida quotidiana, aprendendo a distanciarmo-nos do imediato, a reduzir a velocidade, a contemplar e a escutar. Isto pode acontecer quando, de modo desinteressado, uma pessoa se detém para ler um livro (n. 31)
A representação simbólica do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, como dimensões que na literatura tomam a forma de existências individuais e de acontecimentos históricos coletivos, não neutraliza o juízo moral, mas impede-o de se tornar cego ou superficialmente condenatório. Pergunta-nos Jesus: “Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não vês a trave que está na tua vista?” (Mt 7, 3) (n. 38).
A literatura ajuda o leitor a quebrar os ídolos das linguagens autorreferenciais, falsamente autossuficientes, estaticamente convencionais, que por vezes correm o risco de contaminar até o nosso discurso eclesial, aprisionando a liberdade da Palavra. A palavra literária é uma palavra que põe a linguagem em movimento, liberta-a e purifica-a; abre-a, por fim, às suas ulteriores possibilidades expressivas e exploratórias, torna-a hospitaleira à Palavra que vem habitar na palavra humana, não quando se entende a si mesma como conhecimento já pleno, definitivo e completo, mas quando se torna vigília de escuta e de espera d’Aquele que vem renovar todas as coisas (cf. Ap 21, 5) (n. 42).
O exemplo de Paulo em Atenas. Falando de Deus, no Areópago, Paulo diz: “É nele, realmente, que vivemos, nos movemos e existimos, como também o disseram alguns dos vossos poetas: ‘Pois nós somos também da sua estirpe’” (At 17, 28). Neste versículo, temos duas citações: uma indireta, na primeira parte, onde se cita o poeta Epiménides (séc. VI a.C.), e uma direta, citando Fenómenos do poeta Arato de Silo (séc. III a.C.), que canta as constelações e os sinais do bom e do mau tempo. “Paulo revela-se um ‘leitor‘ de poesia e deixa intuir o modo como se aproxima ao texto literário, o que não pode deixar de levar a refletir sobre um discernimento evangélico da cultura. Ele é definido pelos atenienses como spermologos, que significa ‘papagaio, tagarela, charlatão‘, mas literalmente quer dizer ‘colecionador de sementes‘. Assim, paradoxalmente, o que era um insulto parece uma verdade profunda. Paulo recolhe as sementes da poesia pagã e, abandonando uma atitude anterior de profunda indignação (cf. At 17, 16), chega a reconhecer os atenienses como ‘os mais religiosos dos homens‘ e, naquelas páginas da literatura clássica deles, vê uma verdadeira preparatio evangelica” (LATOURELLE, R. Letteratura [in] LATOURELLE, R. & FISICHELLA, R. Dizionario di Teologia Fondamentale. Assis, 1990) (n. 8). (Carta do Santo Padre Francisco sobre o papel da Literatura na Educação, n. 8).