Quem é o Anticristo? No Apocalipse, é inconfundível: uma besta oceânica com sete cabeças e dez chifres, precedido por um dragão vermelho, também com sete cabeças e dez chifres, e acompanhado de outra besta, com dois chifres “como os de um cordeiro”, que fala “como o dragão” (cf. Ap 13, 1-8). Assim é visto do céu. Mas aqui pode ser tão diferente quanto o diabo da Divina Comédia de Dante e o do Paraíso Perdido de Milton. No épico medieval, é um monstro de três cabeças enterrado em um lago de gelo no fundo do inferno que mastiga três cabeças humanas; no moderno, um príncipe rebelde que voa pelo céu e passeia sobre a terra. No Fausto é um bufão servil. No nosso tempo, como disse Baudelaire, fez seu maior truque e convenceu o mundo de que não existe.
As ambivalências com o Anticristo começam no nome. O grego “anti” tem não só nosso sentido usual de “contra” ou “oposto a”, mas também de “em lugar de” ou “ao invés de”. O poder do Anticristo vem deste paradoxo: em essência, é a antítese do Cristo; em aparência, é (quase) idêntico.
Jesus não fala em um “anticristo”, mas alerta para os “falsos messias” (pseudo-khristos) que no fim dos tempos “farão sinais e prodígios, para enganarem, se possível, até os eleitos” (cf. Mt 24, 24). As coisas se confundem mais nas epístolas de João: “Vocês ouviram dizer que o Anticristo vem; eis que já há muitos anticristos” que “negam o Pai e o Filho” e “não confessam que Jesus Cristo veio na carne” (cf. 1Jo 2, 18-22). Paulo fala no “homem da iniquidade, o filho da perdição”, que, “com portentos, sinais e prodígios enganadores”, “se levantará contra tudo o que é divino e sagrado, a ponto de tomar lugar no Templo de Deus e apresentar-se como se fosse Deus” (2Tes 2, 3-4).
O Pseudo-messias que há de vir. Antes da nova vinda de Cristo, diz o Catecismo (CIC 675), a Igreja será provada por esse “mistério da iniquidade”, uma “impostura religiosa, que trará aos homens uma solução aparente aos seus problemas, à custa da apostasia da verdade”, um “pseudomessianismo em que o homem se glorifica a si mesmo, substituindo-se a Deus e ao Messias Encarnado”.
A Igreja nos proíbe de especular sobre “datas” – pois “o dia e a hora, ninguém sabe, só o Pai” (Mt 24, 36) – mas devemos nos precaver para não ser como os fariseus, que sabem ler sinais meteorológicos, mas não “os sinais dos tempos”. Antes do triunfo de Cristo, virá o calvário da Igreja. Quais serão seus sinais?
A intuição de Soloviev. Em 1900, na intersecção entre a modernidade e a nossa era, entre o Oriente e o Ocidente, o filósofo e místico russo Vladimir Soloviev, às vésperas da morte, antecipou esses sinais. No livro Três Diálogos, um dos personagens lê um manuscrito com as profecias de um monge, primeiro sobre o triunfo do mal, depois, sobre a glória de Cristo.
Primeiro, virão grandes guerras, revoluções e conflitos civis. Depois, um homem de “moral irreprovável e gênio excepcional”, grande intelectual, reformador social, filantropo e ecologista, escreverá um livro, A Via Aberta para a Paz e a Prosperidade Universal, unindo o respeito às tradições ao radicalismo sociopolítico; liberdade de pensamento e religiosidade; individualismo e zelo pelo bem comum; idealismo teórico e soluções práticas. Ele é eleito presidente vitalício de uma aliança de nações ocidentais, depois aclamado “Imperador romano”. Ele pacifica povos beligerantes e põe fim às guerras; faz reformas socioeconômicas que satisfazem os pobres sem agredir os ricos; se alia a um taumaturgo, um bispo meio asiático, meio europeu, que além dos mistérios do misticismo oriental, domina extraordinárias inovações tecnológicas do Ocidente.
Juntos, eles promovem um Concílio ecumênico em Jerusalém para unir os cultos. O Imperador oferece aos católicos reconhecimento da autoridade papal, aos ortodoxos museus para preservar tradições cristãs, aos protestantes institutos bíblicos. Em troca, eles o reconhecem como seu único defensor e protetor. A obra está consumada: paz, prosperidade e unidade para a humanidade. Ou quase… Um resto de cristãos liderados pelo Papa Pedro II, o monge ortodoxo João e o teólogo protestante Ernst Pauli denunciam o “super-homem” como o “Anticristo”, refugiam-se no deserto e iniciam o combate espiritual que levará à sua derrocada.
O grande embuste. Como interpretar essa visão desconcertante? Seremos instados a condenar os dons da inteligência e do caráter humanos; as esperanças no progresso, na paz e prosperidade? Não! Como no Éden e em Babel, a mentira não está no fim, mas nos meios. O pecado de Adão não foi querer ser como Deus, nem o dos construtores de Babel querer unir a terra e o céu, a civilização humana e o reino de Deus: esses desejos estão no fundo do coração humano. O pecado é buscar isso sem Deus. O Anticristo não é demoníaco por querer realizar o reino da paz e da prosperidade, mas por fazê-lo com suas forças, sem o Cristo.
Mesmo os recalcitrantes no Concílio prometem ao Imperador reconhecê-lo “com amor como o precursor da segunda vinda gloriosa”, sob uma condição: que ele confesse “o nome de Cristo, Filho de Deus, que veio na carne, ressuscitou e retornará”. Mas ele não pode. “Ele acreditava no bem, em Deus, no Messias, mas amava só a si mesmo”. Para ele, Jesus foi um grande homem, mas só seu precursor. Cristo foi um reformador da humanidade, ele, seu benfeitor. Cristo dividiu a humanidade entre bons e maus, ela a uniria, distribuindo benefícios aos bons e maus, como o sol que brilha sobre os justos e injustos. “Cristo trouxe a espada; eu trarei a paz. Cristo ameaçou a terra com o Dia do Juízo. Mas eu serei o último juiz, e meu julgamento não será só o da justiça, mas também o da misericórdia. A justiça em minhas sentenças não será uma justiça retributiva, mas distributiva”.
Não procure por dragões e bestas. Como disse o venerável Fulton Sheen, o Anticristo “virá disfarçado como um Grande Humanitário; ele falará de paz, prosperidade e plenitude, não como meios para nos levar a Deus, mas fins em si mesmos”; “sua religião será a fraternidade sem a paternidade de Deus”; ele estabelecerá uma contra-igreja, “com todas as características da Igreja, mas às avessas e esvaziada de seu conteúdo divino”; “escreverá livros sobre a ‘nova ideia’ de Deus para se adaptar ao modo que as pessoas vivem”; “explicará a culpa psicologicamente como erotismo inibido; fará os homens se encolherem de vergonha se seus colegas disserem que não têm uma mente aberta, liberal e progressista; terá a mente tão aberta a ponto de identificar tolerância com indiferença ao certo e errado, verdade e erro”; “invocará a religião para destruir a religião; ele até falará de Cristo, dirá que foi o maior homem que já viveu; sua missão, dirá que é libertar os homens das servidões da superstição e do fascismo, que ele nunca definirá”.
Cristo sopra seu Espírito sobre o mundo. Assim também o Anticristo. Ele não é “anti-homem”, a rigor nem “anticristão” e sequer anti-Deus – até Jesus, “o grande homem”, ele reverencia –, ele é exclusivamente “anti-Cristo”, o negador do Deus-homem e usurpador da sua salvação, como um homem-Deus.
Assim, quando você se perguntar sobre o Anticristo, não procure por dragões e bestas em um futuro distante, mas por uma face humana. Não procure por um inimigo, o Anticristo é seu “amigo”. Ele está próximo. Tão próximo que você pode até vir a encontrá-lo por trás de um espelho.
SOLOVIEV, Wladimir. Os três diálogos e o relato do anticristo. Campinas: Ecclesiae, 2021.