O diálogo socioambiental a partir da ‘Laudato si”

O Papa Francisco, na Laudato si’ (LS) lê a realidade a partir do confronto entre o amor/cuidado que respeita, inclui e protege os fracos e toda a criação, e o poder/dominação que degrada, explora e descarta as pessoas e a natureza. Não fomos educados para um “reto uso” tanto da ciência quanto da economia (LS 102-105) e por isso, precisamos da ‘conversão ecológica’ pessoal LS 202ss) e do diálogo social e político para superarmos a crise ecológica e construir uma sociedade mais justa e humana (LS 163ss).

Luciney Martins/O SÃO PAULO

“No fim, encontrar-nos-emos face a face com a beleza infinita de Deus (cf. 1Cor13, 12) e poderemos ler, com jubilosa admiração, o mistério do universo, o qual terá parte conosco na plenitude sem fim […] A vida eterna será uma maravilha compartilhada, em que cada criatura, esplendorosamente transformada, ocupará o seu lugar e terá algo para oferecer aos pobres definitivamente libertados. Na expectativa da vida eterna, unimo-nos para tomar a nosso cargo esta casa que nos foi confiada, sabendo que aquilo de bom que há nela será assumido na festa do Céu. Juntamente com todas as criaturas, caminhamos nesta terra à procura de Deus, porque, ‘se o mundo tem um princípio e foi criado, procura quem o criou, procura quem lhe deu início, aquele que é o seu Criador’ (São Basílio Magno). Caminhemos cantando; que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança”
(Laudato si’, LS 243-244)

São Paulo VI já se referia à questão ecológica e à crise ambiental, na Octogesima adveniens (OA 21), de 1971. Em um discurso à Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), em 1970, antes mesmo da primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (Estocolmo, 1972) já advertia: “Por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano] começa a correr o risco de destruí-la e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação”. Seus sucessores continuaram a se referir ao tema, mas a comunidade católica mundial só incorporou sistematicamente a perspectiva socioambiental com a Laudato si’ (LS), do Papa Francisco, publicada em 2015. É a partir daí que podemos pensar num diálogo efetivo entre movimento ambientalista e pensamento social católico, com ambos se enriquecendo mutuamente. 

A contribuição do ambientalismo. Ainda que tanto interesses econômicos quanto posicionamentos ideológicos e partidários contaminem os debates sobre o tema, existe atualmente um consenso sobre a gravidade dos desafios ecológicos, por força da observação empírica, dos dados científicos e da sucessão crescente de desastres naturais que acometem o planeta. Assim, seguindo todos os papas desde São Paulo VI (cf. LS 3-6), também a comunidade católica vem se comprometendo cada vez mais com essa luta pela “casa comum”.

A Laudato si’ marca o reconhecimento definitivo desta crise ambiental, tanto em nível mundial quanto local, pela comunidade católica. A “ecologia integral”, que considera a interligação entre todas as coisas e o aspecto social das ameaças ambientais, aporta uma consciência crescente da necessidade de incluir a dimensão ambiental nos trabalhos e na espiritualidade das comunidades cristãs.

A crise do ambientalismo utópico e a contribuição de Francisco. O movimento ecológico tem originalmente um aspecto utópico, de busca de “um outro mundo possível”. Contudo, à medida que a crise ecológica e seus desdobramentos passaram a ser reconhecidos por governos, empresários e lideranças sociais em geral, as metas ambientalistas, para muitos, não foram pensadas nessa perspectiva utópica, mas apenas como possibilidade de “evitar o pior para este mundo”, oportunidades para o econegócio e a expansão capitalista, minando a busca por um outro modo de viver, crítico ao consumismo e ao materialismo ocidental – para desgosto de muitos militantes desejosos de uma mudança mais profunda da sociedade. 

Nesse contexto, Francisco e a Laudato si’ surgiram como uma injeção de idealismo, esperança e amor a revitalizar o movimento ecológico e energizar a juventude. O Papa que se despira dos sinais de poder eclesiástico, que testemunhava com seus gestos um amor concreto pelos excluídos e empobrecidos, abraçava a questão ecológica não apenas com o pragmatismo ditado pela gravidade da crise ambiental, mas com o carinho de quem “sonha” um mundo mais humano – como retoma na Querida Amazonia, com seus quatro sonhos: social, cultural, ecológico e eclesial. Com a mediação da figura de São Francisco de Assis, a espiritualidade cristã retoma seu papel seminal diante do movimento ecológico – e não se pode deixar de notar a afinidade entre um movimento que vê todas as coisas integradas e a experiência religiosa, que “religa” o ser humano ao Criador de todas as coisas e à sua criação.

Falando sobre a conversão ecológica, à qual todos estão chamados, o Papa escreve: “Ajudam a enriquecer o sentido de tal conversão várias convicções da nossa fé, como, por exemplo, a consciência de que cada criatura reflete algo de Deus e tem uma mensagem para nos transmitir ou a certeza de que Cristo assumiu em Si mesmo este mundo material e agora, ressuscitado, habita no íntimo de cada ser, envolvendo-o com o seu carinho e penetrando-o com a sua luz; e ainda o reconhecimento de que Deus criou o mundo, inscrevendo nele uma ordem e um dinamismo que o ser humano não tem o direito de ignorar […]Convido todos os cristãos a explicitar esta dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça recebida se estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que os rodeia, e suscite aquela sublime fraternidade com a criação inteira que viveu, de maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis” (LS 221).

A ecologia integral é afetiva e espiritual. A falta de vivência com a questão ecológica levou os próprios cristãos a pensar na ecologia integral da Laudato si’ a partir do paradigma “todas as coisas estão interligadas”. Tal paradigma está presente, de fato, na ecologia integral, assim como em todo o pensamento ecológico. A especificidade do adjetivo “integral” está em outro lugar: na capacidade de integrar a dimensão afetiva, a estética e a espiritual à militância ambientalista. Também aqui não se pode falar propriamente numa “exclusividade”, essas dimensões sempre foram importantes para os ambientalistas, mas raras vezes foram vistas como essenciais para a resolução dos problemas ecológicos.

Segundo Francisco, para solucionar os problemas ecológicos, “é necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria” (LS 63). Essa integração é possível a partir de um amor que “cuida” tanto da natureza quanto dos irmãos: “o amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade” (LS 231).

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