O Evangelho segundo São João e os Manuscritos do Mar Morto

O artigo a seguir procura apresentar alguns traços da riqueza que os Manuscritos do Mar Morto trouxeram para o estudo dos textos do Novo Testamento. Com certeza, vários aspectos a respeito dos livros neotestamentários terão que ser revistos. Devemos estar abertos às pesquisas que continuarão, para a melhor compreensão do texto bíblico.

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O século XX foi, sem dúvida, um tempo de grandes avanços nas pesquisas bíblicas. O desenvolvimento da ciência e da tecnologia, principalmente da computação, ao lado das grandes descobertas arqueológicas, permitiram, podemos dizer, uma reviravolta copernicana do universo das Sagradas Escrituras. Entre essas descobertas, destacam-se os Manuscritos do Mar Morto (ou Manuscritos de Qumran). Passados 75 anos de sua descoberta, tais manuscritos têm suscitado calorosos debates acerca da sua relação com os textos bíblicos, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento.

Os Manuscritos e o movimento essênio. Em função dos achados de Qumran, os estudiosos têm-se indagado sobre a relação dos Essênios com Jesus e João Batista. Alguns sinais permitem tal debate. O batismo pregado por João Batista estaria em relação com os abundantes banhos rituais praticados pelos Essênios? Tal questão não surge ao acaso. João Batista, sendo filho de Zacarias e, portanto, sacerdote, teria se vinculado ao movimento essênio, que era um movimento sacerdotal dissidente do movimento sadoquita de Jerusalém? Assim, a sua “ida para o deserto” teria sido a sua vinculação a este movimento?

Por outro lado, devemos recordar que Jesus não era de família sacerdotal. Contudo, a última ceia, conforme aparece nos Sinóticos, ocorreu no bairro essênio de Jerusalém. Seria mera coincidência? Vamos complicar mais um pouco. Na última ceia, Jesus faz a bênção do pão e do vinho, relacionando-os com o seu corpo e sangue. Qual é o problema? O vinho não fazia parte da ceia judaica à época de Jesus. Tal prática aparece ao final do I século a.C., dentro da comunidade essênia, conforme narra o Livro de Jubileus (Jub 49), um livro religioso judaico bem conhecido nos primeiros séculos do Cristianismo, que foi encontrado entre os Manuscritos do Mar Morto, e passou a fazer parte da ceia pascal judaica somente a partir do século II d.C. Podemos ampliar a questão se levarmos em conta que Paulo se converte quando viaja para Damasco a fim de capturar cristãos. A questão é que Damasco era conhecida por ser um ambiente essênio. Teriam os Essênios logo assimilado o Cristianismo? Caso positivo, por quê? Como se vê, as indagações continuam abertas.

O Quarto Evangelho. Grande parte do material descoberto encontra-se deteriorado, em pequenos fragmentos que, ainda hoje, estão sendo unificados, como numa atividade de quebra-cabeça. Além da tarefa de reconstrução dos textos fragmentados, existe a tarefa de interpretação dos conteúdos do material. Na atividade de interpretação, para exemplificar com apenas um livro do Novo Testamento, se tem evidenciado a similaridade com o Evangelho segundo São João. Tal proximidade tem levado os pesquisadores a se indagarem sobre sua origem e mensagem. Antigas concepções sobre este Evangelho caíram por terra, exigindo um esforço renovado de pesquisa.

Por exemplo, a fama de antissemitismo ou antijudaísmo joanino exige ser repensada, em função da própria configuração deste Evangelho. Nele, Jesus afirma que a salvação vem de Judá (Jo 4,22). Além disso, é narrado que um grupo de judeus está com medo dos judeus (Jo 7,11-13). O que isso significa? Deve-se ponderar, ainda, que o autor deste Evangelho menciona diversos grupos dentro de Judá e fora dele: mestres da Lei, fariseus, saduceus, chefe dos sacerdotes, sumo-sacerdote, samaritanos, gregos, assim por diante. Portanto, existe uma pluralidade de pessoas e/ou etnias interagindo no universo joanino. Isso também permite refutar indagações como, por exemplo, de que o uso “dos judeus” poderia se referir ao autor escrevendo para gentios ou uma depreciação do Judaísmo. Além do mais, o contexto interno do Evangelho não permite afirmar que este tenha sido o último a ser escrito e dirigido ao universo pagão.

Temas como “luz e trevas” (presente nos Manuscritos reunido no rótulo “Regra da Comunidade”, 1QS 3,19) ou “morte e vida” eram vistos como resultados de influências do gnosticismo do século I d.C., como por exemplo, do valentianismo alexandrino. Os manuscritos de Qumran demonstraram que esse tipo de dualidade já estava presente no universo literário judaico de Israel no período anterior ao nascimento de Jesus Cristo, permitindo desvincular o Evangelho deste contexto.

Isso veio corroborar a desconfiança de alguns pesquisadores sobre a datação e local de origem do Quarto Evangelho. Por exemplo, a menção às festas de Israel, por si, já refuta teorias pré-concebidas sobre origem e datação deste evangelho. De fato, é inconcebível a ideia de um público proveniente da gentilidade como alvo do redator final. Caso isso fosse verdade, o autor jamais teria dedicado quatro capítulos para descrever Jesus participando da Festa das Tendas e da celebração da Dedicação (Jo 7-10). A primeira, segundo Plutarco, “era uma medíocre cópia da grandiosa festa de Baco”. Este é o motivo pelo qual a maior festa de Israel não é mencionada pelos Sinóticos. Por outro lado, na relação entre João e Qumran, encontram-se traços sensíveis dentro do próprio evangelho que demonstram proximidade do autor com os Essênios. Durante a narrativa da Festa das Tendas (Jo 7-8), a certa altura Jesus afirma: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu Dia. Ele o viu e encheu-se de alegria!” (Jo 8,56). Esta afirmação só é compreensível por meio do Livro de Jubileus, quando narra que a Festa das Tendas fora criada por Abraão para celebrar sua exultação ao saber que seria pai de Isaac (Jub 16,17). Não somente isso, que fora Jacó a instituir o sacerdócio levita para presidir a Festa de Deus (Jub 32). A narrativa do encontro de Jesus com Natanael, principalmente a afirmação de que este verá os anjos subindo e descendo sobre o Filho do Homem (cf. Jo 1,45-51) não está diretamente relacionada com o Sonho de Jacó (Gn 28,10-17), mas com a reelaboração essênia sobre o Templo de Jerusalém (Jub 32).

Outros traços dos Manuscritos do Mar Morto são evidenciados no Quarto Evangelho. A Regra da Comunidade (1QS) apresenta diversos temas que encontramos no texto evangélico: o duplo uso do Amém (=Verdade) nas falas de Jesus é típico de Qumran (1Qs 1,20; 2,10.18), bem como os temas do Espírito da Verdade (Jo 14,17; 15,26; 16,13 // 1Qs 3,18; 4,21.23); filhos da luz (Jo 12,36 // 1QS 3,13.24.25); luz da vida (Jo 8,12 // 1QS 3,7); obras de Deus (Jo 6,28 // 1QS 4,4); obras más (Jo 3,19 // 1QS 4,10.20).

O tema do Templo é muito interessante. O Jesus sinótico desenvolve sua atividade missionária em torno da Sinagoga, enquanto o Jesus joanino em torno do Templo. Além do mais, a expressão “sinagoga” aparece somente duas vezes neste Evangelho e de forma indireta. Este foco sobre o Templo é encontrado nos Manuscritos do Mar Morto, pois os Essênios reconhecem a importância do Templo de Jerusalém, mas contestam o sacerdócio que lá atuava. Assim, tanto o Quarto Evangelho como Qumran descrevem um novo Templo, um Templo espiritual, diferente da tradição petrino-paulina que descreve o cristão como um templo/santuário.

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