O fio de ouro da misericórdia e a ética social do Papa Francisco*

Ao ser chamado pela Editora Vaticano para escrever um volume sobre a ética social do Papa Francisco, para a coletânea La teologia di Papa Francesco, logo pensei que o fio condutor deveria ser o da misericórdia, que não só inspira sua doutrina social, mas, também, todo o seu agir, ensinar, governar e viver. Este fluxo de água viva conduz imediatamente a outra característica do Santo Padre: o seu desejo de “uma Igreja pobre para os pobres”, com todas as consequências que isto implica, mesmo em relação à nossa frágil “irmã mãe terra”. Este não é apenas o conteúdo, mas, também, o método de sua ética e doutrina social.

Assim, considero que a misericórdia é o fio de ouro transversal tanto à ética social quanto a todo o pontificado de Francisco. Quando se tornou bispo, escolheu um lema que ainda hoje conserva como Papa: a frase de São Beda, o Venerável, miserando atque eligendo, referindo-se a Jesus que olhou para Mateus com amor misericordioso e o escolheu (Misericordiae Vultus, MV 8). É assim que ele não só se reconhece como pecador e destinatário da misericórdia e do perdão de Deus, mas, também, vê sua eleição. Por isso, sente-se chamado a vivê-la, praticá-la e ensiná-la. Pela minha parte, penso que, para Bergoglio, essa frase não é apenas um lema, mas um carisma, um temperamento de espírito existencial, uma doutrina viva, um modo de governo. O que ele afirma em geral pode ser aplicado a ele: “sou amado, logo existo; estou perdoado, por conseguinte renasço para uma vida nova; fui ‘misericordiado’ e, consequentemente, feito instrumento da misericórdia” (Misericordia et misera, MeM 16). E assim ele experimenta e comunica “a alegria do Evangelho”.

“Eu sou um pecador. Esta é a melhor definição. E não é um modo de dizer, um gênero literário. Sou um pecador […] Sou um pecador para quem o Senhor olhou. Sou alguém que é olhado pelo Senhor. A minha divisa, Miserando atque elegendo [tirada de uma Homilia de São Beda, o Venerável, comentando a vocação de São Mateus], senti-a sempre como muito verdadeira para mim”. Papa Francisco, respondendo à pergunta “Quem é Jorge Mário Bergoglio?” (Entrevista a Padre Antonio Spadaro, 19/ago/2013)


“Precisamos sempre contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade e paz. É condicão da nossa salvação. Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperanca de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado” (Misericordiae Vultus,
Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da
Misericórdia, 11/abr/2015)

Na misericórdia, o Papa Francisco encontra “a própria substância” (Carta ao Cardeal Poli), “o núcleo” (Misericordiae vultus, MV 9), a “palavra-chave” (ibid.), a “síntese” (MV 1), a “lei fundamental” (MV 2), o “feixe mestre” (MV 10) da Boa-Nova de Jesus, “a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade” e “o caminho que une Deus ao homem” (MV 2). “Do próprio coração da Trindade, da mais profunda intimidade do mistério de Deus, brota e corre sem parar o grande rio da misericórdia” (MV 25). Sua primeira viagem como Papa fora de Roma, a Lampedusa, foi um grande gesto em direção ao futuro que simboliza esta chave decisiva de interpretação.

 Cristo, à luz do Espírito, é o “rosto da misericórdia” (misericordiae vultus) do Pai – cujo “atributo mais admirável” consiste precisamente na sua misericórdia, segundo São João Paulo II (Dives in misericordia, DM 13, citado em MV 11), “não […] um sinal de fraqueza, mas antes a qualidade da onipotência de Deus” (MV 6). Por isso, não pode haver dúvida de que, para Francisco, a misericórdia tem uma raiz trinitária, sobre a qual se funda em última análise a dimensão social do Evangelho (Evangelii gaudium, EG 176).  O amor infinito do Pai confere a cada homem e a cada mulher uma dignidade infinita (EG 178). O sangue redentor do Filho “redime não só a pessoa individual, mas, também, as relações sociais entre os homens” (ibid.). A ação vivificante do Espírito Santo “age em todos”, “penetra em todas as situações humanas e em todos os vínculos sociais”, “desamarra os nós dos acontecimentos humanos, mesmo os mais complexos e impenetráveis” (ibidem). Por isso, “o próprio mistério da Trindade recorda-nos que fomos feitos à imagem desta comunhão divina, para que não nos possamos realizar nem nos salvar sozinhos” (ibid.), mas como povo fiel de Deus e do seu Reino (EG 176).

Mas, além de ser a substância do Evangelho, a misericórdia é uma das necessidades do nosso tempo, em que “a globalização da indiferença” se realiza em muitos lugares, enquanto, sofremos uma crise socioambiental que ameaça a sobrevivência do planeta (cf. Evangelii gaudium e Laudato si’). Portanto, não basta uma mera “teoria da misericórdia” (Misericordia et misera, MeM 20), mas “onde houver cristãos, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia” (MV 12), pois, como seguidores de Jesus, “somos chamados a fazer crescer uma cultura da misericórdia” (MeM 20), até “realizarmos uma verdadeira revolução cultural” (ibidem).

No micro e no macro. Francisco lembra que “a proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio quanto a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais” (EG 180). O seu “princípio de discernimento” é a universalidade, como São Paulo VI indicou em relação ao desenvolvimento: “todos os homens e o homem todo” (Populorum progressio, PP 14), isto é, “todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes de convivência e todos os povos” (EG 181). É assim, por exemplo, que a exortação pós-sinodal Amoris laetitia (AL) transmite não só a alegria do amor, mas, também, a compreensão benevolente para o condicionamento de tantos matrimônios em “situações irregulares” (Cap. 8), num espírito de misericórdia sem prejuízo da verdade e da justiça.

No início de Misericordia et misera, o Papa contempla, com Santo Agostinho, o encontro “face a face” entre Jesus, “rosto da misericórdia” do Pai, e a pecadora miserável, que representa cada um de nós (incluindo ele mesmo, que muitas vezes se declara pecador), como motivo para abrir o coração à misericórdia e à reconciliação com os nossos irmãos pecadores e sofredores (MeM 1).

Mas, como já dito, refere-se não apenas ao encontro interpessoal, às microrrelações, mas, também, às macrorrelações (Caritas in veritate, CV 2), mediadas por estruturas e instituições sociais, políticas e econômicas. Por conseguinte, trata-se também de reconciliação e de paz entre os povos e até entre grupos sociais de um mesmo povo dilacerado em conflitos internos.

Sem dúvida, a misericórdia não suplanta a justiça, mas a supõe e excede, impedindo-a de “cair no legalismo, falsificar o seu sentido original e obscurecer o valor profundo que a justiça tem” (MV 20). Francisco mostra como o próprio Jesus e, no seu seguimento, Paulo, superaram a perspectiva legalista dos fariseus do seu tempo, concluindo finalmente: “A justiça de Deus é o seu perdão (cf. Sl 51, 11-16)” (ibid.).

Igreja pobre, dos pobres e para os pobres. Se tivermos em conta tanto as preferências do amor misericordioso de Deus Amor quanto a atual gravíssima crise socioambiental, sofrida sobretudo pelos mais frágeis, desembocamos quase espontaneamente no anseio do Papa por “uma Igreja pobre para os pobres”.

Francisco afirma que se vê melhor a realidade em sua totalidade a partir da periferia do que do centro. É por isso que ele olha para a Igreja e para o mundo a partir de Cristo em sua kenosis, a partir dos pobres e excluídos, dos marginalizados. Com essa perspectiva, movido pela misericórdia, expressou, no início do seu pontificado: “Quero uma Igreja pobre para os pobres” (EG 198). Desse modo, assume a agenda inacabada do Vaticano II. Logo antes do Concílio, São João XXIII afirmara: “Diante dos países pobres, a Igreja apresenta-se como é e deseja ser: a Igreja de todos, mas especialmente a Igreja dos pobres” (Mensagem radiofônica, 11/set./1962) […]

É importante recordar que, depois do Sínodo sobre a Justiça (1971), que declarou a luta pela justiça no mundo como uma dimensão constitutiva da evangelização, surgiu a questão de saber se ela é um constitutivo essencial desta ou apenas integrada a ela. Pois, por exemplo, minhas mãos são partes integrantes de mim mesmo, mas, se estiverem faltando, não perco minha identidade. Em vez disso, minha alma e meu corpo compõem minha própria essência. Essa pergunta só foi claramente respondida por São João Paulo II que, na Redemptor hominis (RH), afirmou:

“A Igreja […] considera esta solicitude pelo homem, pela sua humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra e, por consequência, pela orientação de todo o desenvolvimento e progresso, como um elemento essencial da sua missão, indissoluvelmente ligado com ela. E o princípio de uma tal solicitude encontra-o a mesma Igreja no próprio Jesus Cristo” (RH 15).

Os pobres como sujeitos. Em um artigo, o teólogo venezuelano Pedro Trigo compara a expressão de São João XXIII “Igreja dos pobres” com a de Francisco, e diz que poderiam ser interpretadas de três modos distintos: (1) uma Igreja para os pobres, a seu serviço, mas não necessariamente ela mesma pobre, o que não corresponde à ideia de Francisco; (2) uma Igreja em que os pobres “se sintam em casa”, que São João Paulo II e o próprio Francisco afirmam explicitamente (cf. EG 199) e, na minha opinião, já foi amplamente alcançado; (3) além disso, os pobres se tornarem sujeitos ativos e privilegiados da vida e da missão da Igreja. Penso que o desejo expresso por Francisco é tornar realidade esta terceira interpretação, incluindo as outras duas.

Na Evangelii gaudium, o Papa afirma: “Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica. Deus ‘manifesta a sua primeira misericórdia a eles’ (cf. São João Paulo II, Homilia durante a Santa Missa pela evangelização dos povos) […] Como ensinava Bento XVI, esta opção ‘está implícita na fé cristológica naquele Deus que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza’.[165] Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas, também, a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar por meio deles” (EG 198).

De um parágrafo tão rico, gostaria agora de tomar dois pontos-chave. Em primeiro lugar, o caráter de sujeitos ativos – não só pessoalmente, mas também comunitariamente ativos – que é reconhecido aos pobres. E, em segundo lugar, que eles devem ser “colocados no centro do caminho da Igreja” (ibid.), isto é, no centro da sua vida e missão.

Para o povo de Deus e todos os povos. Mas para Francisco não se trata apenas da Igreja, do povo de Deus concebido como um poliedro em que os pobres ocupam um lugar central, mas também dos poliedros que devem compor cada povo e a comunidade global dos povos, numa globalização justa e solidária, em cuja construção os pobres devem desempenhar um papel não só comunitário e ativo, mas, também, criativo e protagonista, em alternativa à atual. Daí a estima que o Papa demonstra pelos movimentos populares e por sua rede mundial. É por isso que, quando os reuniu pela primeira vez em Roma, em 28 de outubro de 2014, exortou-os, dizendo:

“Vós sentis que os pobres não esperam mais e querem ser protagonistas; organizam-se, estudam, trabalham, exigem e, sobretudo, praticam aquela solidariedade tão especial que existe entre quantos sofrem [… Solidariedade] é também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destruidores do império do dinheiro: as deslocações forçadas, as emigrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência”. (Discurso aos participantes no Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 28/out./2014) 

Francisco contrasta a exclusão pelo sistema, a consequente cultura do descarte e a globalização da indiferença, com a criatividade e a criação de novidade na história, que ele observa nos movimentos populares: “Não obstante esta cultura do descarte, esta cultura da demasia, muitos de vós, trabalhadores excluídos, em excesso para este sistema, inventastes o vosso trabalho com tudo o que parecia não poder ser mais usado, mas vós, com a vossa habilidade artesanal, que Deus vos deu, com a vossa busca, com a vossa solidariedade, com o vosso trabalho comunitário, com a vossa economia popular, conseguistes e estais a conseguir… E, deixai que vos diga, isto, além de ser trabalho, é poesia! Obrigado” (idem.)

Enquanto na Evangelium gaudium, se referiu ao papel central ativo dos pobres na Igreja, Francisco em seus três encontros mundiais com os movimentos populares mostra outro aspecto mais amplo dessa realidade. Com efeito, leva a nível mundial a opção pelos pobres e pela Igreja dos pobres, sem distinguir fé ou não fé, esta ou aquela confissão religiosa ou não religiosa, abraçando-os todos como criadores de um futuro possível e melhor. Observa:

“Sei que entre vós há pessoas de diferentes religiões, ofícios, ideias, culturas, países, continentes. Hoje, eles estão praticando aqui a cultura do encontro, tão diferente da xenofobia, da discriminação e da intolerância, que vemos com tanta frequência. Entre os excluídos, há aquele encontro de culturas no qual o todo não anula a particularidade” (Ibidem).

*Agradecemos à Revista Teologia, da Universidade Católica Argentina, na pessoa de seu diretor, Padre José Carlos Caamaño, pela autorização da publicação deste trecho do artigo “El Evangelio de la misericordia según el espíritu de discernimento. La Ética Social del Papa Francisco” (Revista Teología, LV (126), setembro 2018: 145-162).

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