O novo humanismo da misericórdia

Terminado o Concílio Vaticano II, São Paulo VI usou esta imagem: “O Concílio é como um manancial que dá nascimento a um rio. Pode a fonte estar situada ao longe, mas a corrente do rio nos segue” (Audiência, 12/01/1966). Porém, para formar esse imenso caudal que nos conduzirá ao futuro, aflui, principalmente, a vertente profética da “Divina Misericórdia”, nascida das revelações de Santa Faustina Kowalska e oferecida como herança e luz – no Grande Jubileu do Ano 2000 – aos homens e mulheres do terceiro milênio. Para além das formas devocionais, é evidente seu influxo no Magistério; sobretudo, transpôs o nível da vida teologal presente na piedade popular para compor a solene liturgia da Páscoa no Domingo da Misericórdia, e fazer redescobrir o mistério pascal como mistério da divina misericórdia, a fim de que, como anela o Papa Francisco, o querigma trinitário e profético da misericórdia ocupe o centro da vida e da missão da Igreja crente e orante. 

A proclamação do Ano Santo da Misericórdia (2015-2016) é exemplo de que a confluência do Concílio e da mensagem evangélica da divina misericórdia é natural, e cada vez mais caracteriza o caminho da Igreja, já que “o Vaticano II é o Concílio da Misericórdia” e, por sua vez, “a misericórdia é o princípio hermenêutico deste papado, que transmite a compaixão, a ternura e a proximidade de Deus que gera uma plenitude de humanidade” (Carlos M. Galli, Conferência na Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe). Logo, a misericórdia como “princípio hermenêutico” e “plenitude de humanidade” está na linha da hermenêutica da tríade da misericórdia ordenada ao discernimento dos sinais dos tempos até uma cultura da misericórdia (vide artigos anteriores), pois os signa temporum aparecem na Gaudium et spes (GS) em vista de “soluções plenamente humanas” (GS 11) e, portanto, de um “novo humanismo” a partir da cultura (GS 55). 

São João Paulo II sintetizou assim: “É nesta direção que nos conduz também o Concílio Vaticano II, quando, ao falar repetidamente da necessidade de tornar o mundo mais humano, centraliza a missão da Igreja no mundo contemporâneo, precisamente na realização desta tarefa. O mundo dos homens só se tornará mais humano se introduzirmos […] o ‘amor misericordioso’ que constitui a mensagem messiânica do Evangelho” (Dives in misericordia, 14). Pois a isto deve conduzir o “princípio pastoral” (ou querigmático) do Concílio; porém, não se trata tanto de ler os documentos conciliares para depois aplicá-los, e sim de um aprofundamento quanto aos modos de proceder que eles criaram, para desenvolver hoje suas potencialidades de futuro, se, de fato, o método do Concílio permaneceu inacabado (C. Theobald). 

Os sinais dos tempos são “sinais messiânicos” da presença do Reino e devem ser perscrutados à luz da mensagem messiânica do Evangelho, ou seja, na perspectiva do Amor misericordioso: o real é, por princípio, velado, e exige um esforço de decifração diante dos acontecimentos, pela fé que se deixa conduzir pelo Espírito Santo até uma plenitude de humanidade (GS 4 e 11). Daí a “chave simbólica” e bíblica do sinal de Jonas, sinal messiânico da misericórdia de Deus (cf. “O simbolismo da misericórdia”, O SÃO PAULO, 22/06/2022), que exige o ver-julgar-agir constitutivo da GS. Assim, ajustada ao mundo de hoje (não o de 1965), uma hermenêutica segundo o tempo do culto e da cultura da misericórdia entra na correnteza do Concílio e da “Divina Misericórdia”, sem prescindir da força do símbolo e da visão messiânica da História. 

Marcelo Cypriano Motta, advogado, contemplado com a Medalha “São Paulo Apóstolo” 2018, atua na “Promoção da Cultura da Misericórdia” no Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP. 

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