Diante dos novos desafios da inteligência artificial, o Papa Francisco nos testemunha como a sabedoria cristã cria uma postura humana mais justa para enfrentar todas as situações.

“Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?” A essas palavras de um jovem rico, Cristo responde: “Por que me chamas de bom? Só Deus é bom, e mais ninguém” (Mc 10,17-18). Jesus não diz que Ele não é Deus (ao contrário, sabemos que Ele é a sua Encarnação); apenas é categórico: só Deus é bom.
Nesse sentido, cabe nos inquietarmos quando arriscamos transformar uma tecnologia como a inteligência artificial (IA) em um “oráculo”, em algo que parece poder responder a tudo. Os desenvolvimentos dos últimos anos e, em particular para a percepção pública, a chegada dos Modelos de Linguagem de Grande Escala (em inglês, LLMs), tais como o ChatGPT, trouxeram uma grande preocupação sobre os riscos éticos do uso de tais algoritmos.
Um novo horizonte que se abre. Ao mesmo tempo, os potenciais benefícios são enormes, na medida em que a IA nos pode auxiliar a desperdiçar menos recursos, otimizar processos, salvar vidas por meio de novos tratamentos e muitas outras coisas. De fato, tudo o que Deus criou é bom, e o homem é chamado a colaborar na obra da Criação (cf. Gn 1-2). Se Ele não ignora nenhuma dimensão da vida humana, ou seja, daquilo que concerne sua criatura racional, cabe colocar a questão: onde está Deus quando se fala de “inteligência artificial”?
Não se trata, portanto, de demonizar a IA, mas de observar suas potencialidades e seus riscos, para buscar um bom uso dessa tecnologia para a sociedade. Nesse sentido, o Papa Francisco proferiu recentemente uma série de discursos importantes tocando no tema, parte dos quais reproduzimos ao longo deste caderno especial.
Não é aqui o lugar para apresentar uma visão oficial do Magistério da Igreja sobre o tema, de enorme complexidade, inclusive técnica, e que tem visto mudanças extremamente rápidas (o que motivou, inclusive, a Chamada de Roma por uma Ética na IA em 2020, e a Nota Antiqua et nova sobre a relação entre inteligência artificial e inteligência humana, de 2025). Buscamos simplesmente fazer ressoar aqui a voz do Papa Francisco na sabedoria que ele traz sobre o tema.
As áreas impactadas pela IA na nossa sociedade são muitas: a saúde, o direito, as artes, a educação, entre tantas outras. Igualmente numerosos são os tipos de questões éticas que têm sido levantadas em relação ao uso da IA: privacidade de dados, vieses discriminatórios, impacto ambiental, falta de “explicabilidade” sobre os algoritmos, o futuro do trabalho, concentração de poder nas mãos de algumas empresas, massificação de certas visões de mundo por meio de uma padronização que tolhe a criatividade… A certeza que cabe é a de que a reflexão sobre esses assuntos é urgente.
O bom uso da tecnologia. Em particular, deve-se reconhecer que podemos fazer um uso da IA que é melhor ou pior. Como diz o Papa, na sua Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2024, “cada coisa nas mãos do homem torna-se oportunidade ou perigo, segundo a orientação do coração”. Como sabemos bem, é aquilo que sai do homem que louva ou corrompe as ações e a natureza. Mas não cabe, por isso, incorrer no mito da tecnologia neutra. No discurso ao encontro do G7 sobre IA, Francisco completa: “O chamado ‘algoritmo’ […] não tem nem objetividade nem neutralidade” mas “só pode examinar realidades formalizadas em termos numéricos”.
Trata-se, portanto, de saber colocar a tecnologia (e em particular a IA) no seu justo lugar, para que seja possível fazer dela um bom uso. Especificamente, para uma boa reflexão sobre um adequado uso da IA, é importante nunca nos esquecermos da centralidade da pessoa humana e da sua dignidade intrínseca (como destaca a declaração Dignitas infinita), e, na linha do que traz a encíclica Fratelli tutti, retomar o ideal de uma boa política fundamentada na fraternidade universal.
Curiosamente, por mais que se discuta a tecnologia, no caso da IA, mais nos voltamos para o ser humano, trazendo como que por um espelho as grandes questões da antropologia fundamental. Podemos nos questionar se a máquina de fato possui inteligência – e isso nos faz questionar, do ponto de vista filosófico, o que é afinal a inteligência humana? E a consciência, a liberdade e a criatividade? Surge, portanto, uma ocasião para refletir e valorizar essas capacidades que recebemos como dons, entendendo o que as distingue.
Em particular, sabemos que a IA só pode funcionar graças a um enorme volume de dados que servem para informá-la sobre padrões. Mas, como já colocava T. S. Eliot, nos coros de A rocha, podemos nos questionar: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”. Ao ser humano, de nada aproveitará um mar de dados se naufragarmos em meio a eles por não os usar com sabedoria.
Como dizia o Papa Francisco aos líderes do G7, “falar de tecnologia é falar sobre o que significa ser humano e, portanto, sobre aquela nossa condição única entre liberdade e responsabilidade, ou seja, é falar de ética”.