Os ídolos do poder e as ilusões humanas: duas histórias sobre o Anticristo

A sabedoria cristã sempre alertou que, antes da nova vinda de Cristo, teríamos o Anticristo entre nós. Assim, no Advento, pode ser útil refletir sobre o significado desta figura. Surpresos, poderemos nos dar conta de que o tal Anticristo não é um ser escatológico, vindo de algum delírio fundamentalista, mas uma realidade presente onde quer que os seres humanos depositem sua esperança no poder e não na graça…

Arte: Sergio Ricciuto Conte

 Robert Hugh Benson (1871-1914) foi um dos mais importantes autores católicos de seu tempo. Dedicou grande parte de sua vida à escrita e à defesa da Igreja. Escreveu obras históricas, de terror e ficção científica. Filho de um arcebispo inglês, era um clérigo destacado da Igreja Anglicana. Compreensivelmente, sua conversão ao catolicismo, em 1903, causou grande comoção na Inglaterra. Ao longo de sua vida, publicou mais de 15 livros e chegou a ser nomeado Monsenhor pelo Papa Pio X, em 1911. O Papa Francisco o menciona várias vezes.

Vladimir Soloviev (1853-1900) foi um polêmico filósofo, escritor e teólogo russo. É considerado um dos responsáveis intelectuais por um “reavivamento espiritual” russo do início do século XX, influenciando nomes como Berdyaev, Bulgakov e Florensky, infelizmente pouco conhecidos entre nós. Vindo de uma família de intelectuais russos, sofreu perseguições e incompreensões por suas ideias políticas e religiosas. Defendeu, por muitos anos, a necessidade de reunificação do catolicismo ortodoxo ao latino.

Esses dois autores, apesar das grandes diferenças entre a Rússia czarista e a Inglaterra liberal do século XIX, compartilharam uma época de grandes mudanças culturais, de crise do pensamento religioso tradicional e ascensão do secularismo. Compartilham também uma intuição, desenvolvida em obras literárias muito di ferentes por cada um deles, mas com a mesma base comum. Ambos são, provavelmente, os primeiros escritores explicitamente cristãos a descrever o que seria uma distopia futurista (tema que se tornou muito frequente na literatura a partir do século XX). Mais do que isso: ambos identificam essa distopia com a vinda de um anticristo, um líder mundial que aparenta realizar o bem, mas, na verdade, quer submeter totalmente a humanidade, aniquilando qualquer relação com o transcendente. Para ambos, a distopia futurista não é apenas uma estrutura sociopolítica totalitária, mas coincide com a tentativa de expulsar Deus do coração humano. 

Em 1900, Soloviev publicou Os três diálogos e o relato do anticristo (Campinas: Ecclesiae, 2021), também conhecido como Breve História sobre o Anticristo (São Caetano do Sul: Santa Cruz, 2016). Em 1907, Benson publicou O Senhor do mundo (Campinas: Sétimo Selo, 2021). Os dois livros, apesar de muito diferentes, trazem o mesmo núcleo narrativo: um grande líder carismático, que vai sendo seguido mesmo pelos religiosos mais fiéis e os militantes mais engajados, se torna o governante de toda a humanidade, oferecendo a todos a paz e a prosperidade, na condição de que o adorem praticamente como a um deus. Contudo, à medida que essa utopia se realiza, vai desumanizando as pessoas, manipulando-as, tirando-lhes a espiritualidade e levando-as a abandonar seus valores morais.

Não é difícil traçar as semelhanças entre o Anticristo retratado por Soloviev, o “senhor do mundo” de Benson e tantos líderes populistas e antissistema de nossos tempos. Cada um deles promete realizar a sociedade que almejamos, consagrar nossos valores, banir os maus. Oferecem o bem e, com isso, conquistam nossos corações e mentes. Mas, na prática, vão minando a nossa liberdade, nos levando a uma adesão cada vez mais automática a eles. Não se trata aqui, evidentemente, de querer demonizar a quem quer que seja, mas sim de perceber como uma promessa de bem pode servir à manipulação e à dominação.

Em nosso tempo, aqueles que estão de um lado do espectro político facilmente identificarão o Anticristo nas lideranças do extremo oposto. Mas tanto Soloviev quanto Benson consideram que ele irá superar as divisões ideológicas. Esquerdas e direitas têm  a possibilidade de gerar o Anticristo, aliás, ele se alimenta das promessas e dos desvios de ambos os lados do espectro ideológico.

Não será a escolha por um lado ou por outro, no confronto político, que nos libertará da manipulação e da dominação. Soloviev e Benson nos alertam que apenas a adesão sincera e fiel a Deus pode nos dar a liberdade e o espírito de construção do bem comum a que tanto almejamos. Um mundo que nega a Deus não consegue mais encontrar o próprio coração humano.

Como diz Bento XVI, na abertura da Conferência de Aparecida, não se trata de negar a luta pelo bem realizada também pelos que não creem em Deus, mas em reconhecer o sentido radical de nossa dependência Dele: “Não quero dizer que os não crentes não podem viver uma moralidade elevada e exemplar; digo somente que uma sociedade na qual Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais e a força para viver segundo a pauta destes valores, também contra os próprios interesses”.

E podemos sempre nos perguntar: “Nós, cristãos, estamos realmente depositando nossa confiança no Senhor, seguindo a Cristo e buscando viver segundo o Seu amor, ou também nos entregamos à ilusão de um poder humano que nos trará a segurança, o respeito e a justiça que tanto almejamos?”.

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