Povo e democracia no pensamento de Jorge Bergoglio / Papa Francisco

Para Jorge Mario Bergoglio / Papa Francisco, a realidade social e política não se constrói a partir da lógica do poder e dos poderosos, mas do ethos, o modo de ser, com seus valores e particularidades, que anima a vida das pessoas. Não coloca unilateralmente a questão política nas dinâmicas do poder, mas olha sobretudo – não exclusivamente – para a importância da construção de um sujeito social inscrito num percurso histórico.

Quando é descartado, o povo é privado não só do bem-estar material, mas inclusive da dignidade de agir, de ser o protagonista da sua história, do seu destino, de se expressar com os seus valores e a sua cultura, da sua criatividade e da sua fecundidade. Portanto, para a Igreja, é impossível separar a promoção da justiça social do reconhecimento dos valores e da cultura do povo, incluindo os valores espirituais que são a fonte do seu sentido de dignidade. Nas comunidades cristãs, estes valores nascem do encontro com Jesus Cristo, que procura incansavelmente quantos estão desanimados ou desorientados, indo até aos limites da existência para ser rosto e presença de Deus, para ser “Deus conosco” (Mensagem do Papa Francisco à Conferência “Uma política enraizada no povo“, 15/abr/2021)

A raiz corrompida de uma sociedade global baseada no descarte leva a uma tensão estrutural no interior da condição humana, uma tensão que pode mostrar, mais uma vez, que cada pessoa e cada comunidade é feita para transcender, para buscar a plenitude da vida na verdade, bondade, beleza e justiça. Assim, partindo sempre de baixo e da periferia, com modéstia e perseverança, poderemos mostrar que “a reconciliação restauradora nos reanimará e nos fará perder o medo de nós mesmos e dos outros” (Fratelli tutti, FT 78 )

Quem deve ser o sujeito da política? Alguma classe social? O governo? Os partidos? Os “políticos”? Jorge Mario Bergoglio observou que os políticos, os grupos políticos e as instituições do Estado moderno vivem uma ruptura essencial com a vida real das pessoas concretas. “A nossa política não esteve, muitas vezes, decididamente ao serviço do bem comum, tornou-se um instrumento de luta pelo poder ao serviço dos interesses individuais e setoriais, de posicionamento e ocupação de espaços, em vez de conduzir processos. Não soube (não quis ou não soube) estabelecer limites, contrapesos e equilíbrios ao capital, de modo a erradicar a desigualdade e a pobreza que são os flagelos mais graves de nosso tempo” (BERGOGLIO, J.M. Nosotros como ciudadanos, nosotros como Pueblo. Buenos Aires: Comisión de Pastoral Social, 2010).

Para ele, o déficit da política, sua dissolução, reside no fato de que não nasce do povo, não se faz junto-com-o-povo e, portanto, muitas vezes não serve ao povo. O ressurgimento da política ocorre quando os cidadãos se descobrem parte de um povo. Descobrir-se “povo” é uma rica experiência: fraternidade cotidiana, generosidade sem expectativas, valorização de um ethos vivo que norteia a existência, rejeição da massificação e, portanto, do anonimato. Descobrir um povo significa usar a tradição como hipótese a ser verificada em cada geração e como impulso para repensar o que deve ser feito para promover concretamente o bem comum.

O povo não é adequadamente explicado a partir da racionalidade que rege as sociedades atuais (cf. FT 158, 163). O povo é uma comunidade constituída por uma cultura e uma história, o povo é o lugar de pertencimento natural do ser humano, onde herda, caminhando com os outros, um patrimônio, que recria com seus esforços rumo ao futuro. O povo tem que emergir na responsabilidade cívica, na participação social e na luta política responsável – que não deve ser separada de sua raiz, mas, sim, estar a seu serviço.

Isso requer pessoas e comunidades nas quais, por meio da pertença, se possa desenvolver um caminho educativo comum: “Nada sólido e duradouro pode ser obtido se não for forjado por meio de uma vasta tarefa de educação, mobilização e participação construtiva dos povos” (BERGOGLIO, J.M. Prólogo [in] CARRIQUIRY, G. Una apuesta por América Latina. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 2005).

Populismo e democracia. Nessa leitura, o populismo a que se refere a Fratelli tutti (FT) é viabilizado pela fragilidade da cultura democrática de algumas nações. A sua natureza surge quando um líder cativa a população procurando “instrumentalizar politicamente a cultura do povo, sob qualquer signo ideológico, a serviço do seu projeto pessoal e da sua permanência no poder. Outras vezes, procura aumentar a popularidade fomentando as inclinações mais baixas e egoístas de alguns setores da população. E o caso agrava-se quando se pretende, com formas rudes ou sutis, o servilismo das instituições e da legalidade” (FT 159). Algo que deve ser destacado, nesta citação, é que Francisco aponta que o populismo atual pode ocorrer “com qualquer signo ideológico”, há neopopulismos de direita e de esquerda.

O neopopulismo, embora pretenda estabelecer-se como expressão autêntica do povo, ao minar a sua liberdade, ao manipular o seu ethos cultural e histórico, “ignora a legitimidade da noção de povo” (FT 157). A realidade do “povo” se for fragilizada, deformada ou manipulada, condiciona a existência das democracias, pois estas, em qualquer das suas definições, apelam precisamente ao povo como dimensão constitutiva e incontornável.

É por isso que o Papa Francisco aprecia muito o potencial dos “movimentos populares” que crescem de baixo e, pouco a pouco, se encontram e criam sinergias entre si. Para entender o real papel desses movimentos, é preciso dizer que fazer política “para o povo” não é o mesmo que fazer política “a partir do povo”, ou seja, a partir do afeto e do pertencimento real a uma comunidade unida por sua cultura e sua história, que se põe em movimento.

A democracia, como toda realidade política, é frágil, imperfeita e gera decepções. No entanto, em seu nome mora o ideal de uma participação mais igualitária que limite o despotismo e sua violência. Hoje, mais do que nunca, a democracia precisa do povo, do povo real, como remédio saudável. A democracia exige ser capaz de gerir a vida humana imperfeita, individual e comunitária, respeitando as condições que a impedem de cometer suicídio político. 

No povo está a resposta. Bergoglio não para de insistir em olhar para a realidade do povo, ou seja, para a necessidade de viver em simbiose com o povo, de ser povo, para gerir o bem comum e não provocar uma separação metodológica e existencial entre os políticos e as pessoas reais, aquelas que sofrem e das quais é muito fácil falar sem realmente compartilhar suas vidas. Repensar a política e reconstruí-la em sua natureza autêntica não envolve tanto círculos intelectuais ou grupos supostamente “estratégicos” que buscam reorganizar a sociedade de acordo com o bem.

As elites e os grupos políticos só contribuem realmente para o bem comum quando vivem e trabalham a partir de uma profunda pertença e adesão voluntária a um estilo de vida que não está separado do povo, de sua história, de seus desejos, de seu ethos real. Só assim é possível compreender o potencial mobilizador e sensibilizador da categoria “povo que caminha na história”. Só assim é possível reconstruir, a partir de baixo e da periferia, aquilo que muitas vezes o “vértice” e o “centro” não conseguem construir.

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