Santo Sudário: uma saga desconhecida

Um dos objetos mais misteriosos da história da humanidade – senão o mais misterioso (no sentido religioso do termo) – o Sudário de Turim traz a inegável imagem de um homem crucificado. Cientistas tentam chegar a um consenso sobre a origem de sua imagem, a datação do tecido, a explicação de suas características peculiares. Seja qual for a verdade sobre ele, para aqueles que têm fé, permanece como um sinal comovente deixado por Deus, para que não nos esqueçamos do sacrifício de amor que Cristo fez por todos..

Rosto humano no Sudário de Turim. À esquerda o positivo, à direita o negativo, com contraste realçado. Fonte: Wikimedia.

Ao se encerrar o período da Quaresma, tempo de preparação em que se celebram os principais eventos do Cristianismo, chegamos ao Domingo de Ramos, dando início à Semana Santa. Jesus entra em Jerusalém aclamado com gritos de júbilo e hosanas; mas, dias depois, o populacho pedirá sua crucificação. Período de intenso simbolismo e mistério, quando se medita, de modo especial, a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Jesus.  

Tais imagens, descritas nos Evangelhos, proclamadas nas celebrações eucarísticas, meditadas nos mistérios dolorosos do rosário, nas vias-sacras, nos diversos filmes que buscam retratar esses acontecimentos, estão presentes em nossa memória coletiva. No entanto, como essas são construções imagéticas de terceiros, poderíamos nos questionar: como terá sido, efetivamente, os últimos momentos de Jesus naquela semana decisiva para nossa salvação? Até que ponto aquelas imagens reproduzem, ou não, aquela realidade histórica?

O Sudário. Neste ano, em que se comemoram os 1990 anos daquele dia que nos abriu as portas de nossa redenção, outra imagem vem nos dar luz a determinados pontos que não ficaram claros na leitura dos Evangelhos, de modo especial, quando tratam dos últimos acontecimentos da vida de Jesus: o Sudário de Turim.

Provável lençol mortuário que teria envolto o corpo sem vida do Mestre ainda no sepulcro após sua crucificação, as imagens presentes na mortalha nos fazem compreender, de maneira mais intensa, a amplitude daqueles eventos, de certa maneira imprecisos, como os presentes nos textos sagrados.

Mas, como foi possível tamanha imprecisão? Basta termos em mente que tudo aquilo que é banal passa, muitas vezes, despercebido, a ponto de não darmos importância sequer para registrá-lo. Algo parecido pode ter ocorrido com os evangelistas, ao retratarem aqueles fatídicos acontecimentos da quinta e da sexta-feira santas. A crucificação, por exemplo, já deveria ser tão corriqueira na região a ponto de não ser necessária, devido a sua banalidade, a inclusão de certos detalhes, como saber se o supliciado estava nu (ou não) no madeiro, se carregou a cruz toda para o local de execução, se foram empregados três ou quatro pregos, ou fixarão condenado com cordas.

Os evangelistas, muitos dos quais não estavam sequer presentes na cena, retrataram aquilo que acreditaram ser o essencial: a agonia no Getsêmani, a prisão, os julgamentos, a condenação, a flagelação, a coroação de espinhos, o trajeto percorrido…  Mas, como se deu tudo isso? Tal pergunta, deve-se salientar, pouco importa ao crente, pois é questão de fé, mas para aqueles que não a possuem e poderiam buscar respostas, elas precisam ser dadas, ainda mais em uma época tão iconófila como a nossa.

As controvérsias. Apesar de não ser necessária para nossa fé, que se bastaria a si mesma e sem a necessidade de artifícios externos, a mortalha tornou-se um objeto repleto de controvérsia e fascinação ao longo dos anos. Uns por não a aceitarem como verdadeira, buscando ridicularizá-la como uma relíquia medieval; outros, por creditar a ela poderes quase mágicos!

Mas, por que tamanha fascinação? Pelo simples fato de o Sudário de Turim ter sido um dos artefatos feitos pelo homem mais estudados pela ciência do século XX, a ponto de responder a diversos questionamentos a respeito daquilo que, de certa maneira, é pouco claro ou obscuro nas passagens bíblicas que tratam do assunto. 

Como seres iconotrópicos, ansiamos por imagens, buscamo-las continuamente. Hoje, mais do que nunca e diante das diversas mídias disponíveis, temos uma assombrosa necessidade delas para saciar tamanho impulso. Jesus, porém, conhecendo nossa natureza, ainda mais a de um século tão descrente como o nosso, quis deixar para nossa geração um objeto tão plenamente imagético como o Sudário de Turim.

Este traz impresso, no linho, mais que meros borrões, como se poderia esperar de um pano que tenha envolvido alguém repleto de feridas e de chagas! Aquilo que se vislumbra, pelo contrário, é uma imagem especular de um homem de frente e de costas. Além disso, ao longo dessa figura, se observam diversas marcas de sangue que, no lugar de estarem distorcidas e nodoadas, acompanham os contornos daquele vulto, revelando certas particularidades até então desconhecidas.

Temos, portanto, duas imagens muito claras no Sudário: a do homem e a do sangue que, provavelmente, procedeu dele. Além disso, não se pode esquecer de que há diversas marcas de chamuscamento resultantes de um incêndio, em 1532, em Chambéry, onde a relíquia ficava antes de Turim, bem como manchas de água utilizadas para debelar o fogo.

O torturado. No entanto, aquilo que mais nos chama a atenção são os diversos vestígios de tortura infringida àquele homem, presentes em todo o corpo: várias lesões em formato de halteres dispostas em três pares que nos lembram o flagrum – açoite empregado como parte essencial da pena capital romana –; diversos coágulos na parte posterior da cabeça, bem como na anterior que escorre pela fronte, demonstrando que diversos elementos perfurantes estiveram em contato direto e, de maneira contínua, ao couro cabeludo; uma grande ferida aberta sob o peito direito, provavelmente, por objeto lacerante, cujo sangue escorreu para a parte posterior do corpo, formando uma espécie de cinturão; uma impressão expressiva no pulso de uma das mãos (a palma da outra está encoberta, ficando à mostra apenas os dedos, com exceção do polegar ausente em ambas), demonstrando que a área foi, possivelmente, perfurada por objeto pungente; os pés, assim como as mãos, evidenciam um estigma também proveniente de um objeto perfurante, conforme é possível ver na planta do pé direito, do qual abunda muito sangue que o encharcou por completo; percebe-se uma grande tumefação na face direita, assim como a ausência de parte da barba que parece ter sido arrancada; notam-se, ainda, lacerações nas escápulas…

É importante lembrar que, sob um ponto de vista arqueológico, existem pouquíssimos resquícios da crucificação, logo não há como precisar como tal pena capital era, de maneira efetiva, aplicada no Império Romano. Isso é devido ao fato de os supliciados terem seus corpos abandonados nas cruzes para serem devorados por animais e aves de rapina, a fim de servirem de exemplo para que os habitantes do local não cometessem os mesmos crimes. Assim, a maioria dos crucificados nunca era enterrada, com raríssimas exceções, como aconteceu com Jesus segundo os Evangelhos.

Contudo, tal regalia existiu. Temos, por exemplo, o caso de Jehohanan que viveu por volta do século I d.C. e cujos restos mortais foram encontrados em um ossuário em Jerusalém, em 1969. Ele, por exemplo, tinha o calcâneo direito transpassado por um prego de ferro de cerca de 11,5 cm. Além dele, em 2017, foi encontrado em Fenstanton, na Inglaterra, um esqueleto completo de alguém que havia sido enterrado entre 130 e 360 d.C., cujo calcâneo direito também estava varado por um prego de ferro.

Imagem do Sudário, com as marcas de sangue em destaque. Fonte: Arquivo pessoal, Jack Brandão

Como eram crucificados? No entanto, o interesse científico pelo Sudário de Turim só teve início no final do século XIX, após ser revelada a fotografia de Pia Secondo, em 1898. Isso porque se percebeu que aquela imagem esmaecida de um homem ganhou contornos mais nítidos, exatamente, no negativo fotográfico, algo que seria um total contrassenso. A partir desse momento, não só cresceu o interesse pela relíquia, como também muitos pesquisadores de diversas áreas se debruçaram sobre as imagens que o Sudário fornecia, levando-o a se tornar um objeto de cunho científico. Tais especialistas conseguiram preciosas informações que extrapolaram, de uma vez por todas, o campo religioso, adentrando no histórico, artístico, antropológico, físico, químico, biológico, médico, entre outros.

Na década de 1930, por exemplo, o cirurgião francês Pierre Barbet ficou intrigado com as marcas nos pulsos e começou a fazer uma série de experimentos com cadáveres para entender o porquê. Só aí, percebeu o óbvio: as primeiras representações artísticas da crucificação de Jesus, empregadas desde o século VI com os pregos na região palmar, estavam equivocadas. Seria impossível para as palmas suportarem o peso de um homem, ainda mais com aquela compleição física. Isso porque o peso do corpo rasgaria a pele e este tombaria para frente.

Barbet, ao pregar os pulsos dos cadáveres, percebeu a extrema facilidade com que o cravo atravessava a região, já que há espaços entre seus oito ossos; no entanto, tal ação seria, extremamente, dolorosa para o supliciado, devido aos nervos e tendões ali presentes. Esses, por sinal, ao serem atravessados, faziam com que o polegar, de maneira automática, se lançasse para a palma da mão, praticamente ao local em que os artistas colocavam o prego em suas representações! Não à toa, os polegares do homem estão ausentes…

Percebe-se, assim, como as informações trazidas pelo Sudário de Turim também são de extrema importância para os estudos arqueológicos referentes à crucificação que, mesmo vastamente citada e documentada por fontes romanas, não nos informaram os detalhes de como ocorria, por exemplo, a fixação do condenado à cruz. É provável que, entre os intelectuais romanos, tenha sucedido algo semelhante àquilo que afirmamos, quanto às Escrituras, em relação ao registro de ações banais naquele período.

Soma-se a isso o fato de o imperador Constantino, devido a sua proximidade com o Cristianismo, ter proibido a crucificação como pena capital, no século IV. Mas, por que isso é relevante para os estudos sindônicos, como os que executo há alguns anos? Porque um século após essa proibição e com o Cristianismo tendo sido propagado para grande parte do mundo pagão, para os quais as imagens já era uma realidade há muitos anos, diversos fiéis começaram a buscar por representações do Senhor, que já existiam, mas que não o retratavam na cruz.

As representações artísticas. Surge aí uma questão decisiva para os artistas, acostumados a buscar modelos: como representar uma crucificação se não havia nenhum paradigma para se imitar? Eis que algum pintor, simplesmente, idealizou aquilo que julgava ser tal suplício: braços rentes ao patibulum (trave da cruz), com o corpo formando um ângulo reto em relação ao stipes (poste), pregos nas palmas das mãos, pregos em cada uma das pernas no espaço entre a tíbia e a fíbula, Jesus vestido com roupas sacerdotais, olhos bem abertos, sem a coroa de espinhos, sem nenhuma gota de sangue…

Tal modelo tornou-se paradigmático e seria imitado por grande parte dos artistas do século VI até o momento em que outro paradigma fosse colocado em seu lugar. Pode-se perguntar: que relação têm tais imagens como o Sudário de Turim? Nenhuma! Isso faz dele um objeto único e, digamos, à prova de falsificação pictográfica; pois, como dissemos, os artistas da Antiguidade, assim como os do Renascimento, trabalhavam com modelos que eram, continuamente, imitados.

Por sua vez, o Sudário distancia-se de todo fazer artístico que surgiu na arte pictográfica paleocristã, bem como nas de séculos posteriores. Isso quer dizer que seria muito difícil para um artista daquele período não só inovar e criar algo do nada, mas também fazer com que tal modelo fosse aceito por sua sociedade. Caso isso ocorresse, como aqueles que pintaram as primeiras crucificações, pouco se importariam com questões anatômicas, visto que os valores transcendentais estariam à sua frente, como naquela que seria a pintura bizantina, por exemplo.

O Sudário, após anos de estudos, mostra-nos uma grande precisão na constituição anatômica do homem ali retratado, ainda mais em um tempo no qual tais conhecimentos não eram ainda tão precisos, como na Idade Média, período em que o teste de carbono 14 lançou a origem do pano.

Para conhecer mais sobre o tema, leia:

BRANDÃO, Jack. A saga desconhecida do Santo Sudário de Cristo e de sua Igreja. São Paulo: Editora Lumen et Virtus, 2022.

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