Previsto em recente lei municipal, ‘Auxílio Reencontro’ ainda não tem regras definidas

Número de famílias inteiras vivendo nas ruas na capital cresceu 111% entre 2019 e 2022
Luciney Martins/O SÃO PAULO

Com vistas a conter a vulnerabilidade social da população em situação de rua, a Prefeitura de São Paulo anunciou no fim de junho que poderá conceder “auxílio financeiro a quem se dispuser e demonstrar condições de acolher a pessoa em situação de rua”. 

O chamado “Auxílio Reencontro” está previsto no Artigo 7º da lei municipal 17.819/2022, sancionada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB), em 29 de junho. 

Em coletiva de imprensa, no dia 1º, Alexis Vargas, secretário executivo de Projetos Estratégicos da Prefeitura, explicou que a medida busca estimular que as pessoas em situação de rua sejam acolhidas por familiares, parentes, amigos ou alguém de confiança, e que foi pensada a partir do dado do mais recente Censo da População do Povo de Rua, de que 31% dos entrevistados afirmaram estar nessa condição por conflitos familiares, e 60% declararam manter contato com algum familiar que não está nessa situação. Além disso, o número de famílias inteiras vivendo nas ruas cresceu 111%, em comparação ao Censo de 2019. 

“Agregar mais uma pessoa num núcleo familiar tem um custo que não podemos ignorar e, por isso, o auxílio é fundamental”, comentou Vargas. “Não se trata apenas de um benefício financeiro. Será também um apoio socioemocional. Tanto a pessoa em situação de rua quanto o familiar receberão todo o suporte por meio de atendimentos com psicólogos e assistentes sociais para que o vínculo afetivo seja reestabelecido”, garantiu. 

RECONECTAR PESSOAS 

Ao falar sobre o “Auxílio Reencontro” durante a assembleia sinodal arquidiocesana, no dia 2, Rubens Rizek Júnior, secretário de governo municipal, afirmou que este poderá ser estendido a entidades que abriguem pessoas em situação de rua. 

Em entrevista ao O SÃO PAULO, Rizek detalhou que o programa “tenta estimular que as pessoas em situação de rua, conforme a sua própria vontade, procurem algum vínculo do passado, do presente ou de esperança futura, e que peçam ajuda à Prefeitura para refazer este vínculo com uma família, um núcleo, uma entidade”. 

Rizek lembrou, ainda, que a meta final é “reconectar estas pessoas no seio de famílias. Isso parte do espírito cristão de que a família estabiliza relações. Para isso, uma das formas é dar um auxílio financeiro a famílias que queiram abrigá-las, e também a entidades, sobretudo as religiosas, que as acolhem como se família fossem. Assim, família aqui é um termo lato sensu. Na Missão Belém, por exemplo, as pessoas se tratam como família, se chamam uns aos outros de irmãos. Portanto, o programa Reencontro também vai procurar apoiar este tipo de família”, garantiu. 

UM AUXÍLIO QUE SERÁ BEM-VINDO 

Fundadores e responsáveis pela Missão Belém, o Padre Gianpietro Carrara e a Irmã Cacilda da Silva Leste comentaram à reportagem que a instituição “olha positivamente para essa proposta, porque o programa respeita o perfil ‘familiar’ e ‘privado’ dos membros da Missão Belém que acolhem em suas residências os ‘irmãos’ de rua em vista de sua restauração e recuperação física, psicológica e espiritual. É a primeira vez que um programa do poder público enxerga o perfil privado de quem tenta fazer o bem”. 

Eles afirmaram que, em 16 anos de atuação, a Missão nunca firmou parcerias para recebimento de verbas públicas por causa dos ordenamentos que impediriam a adoção plena de seu método de restauração de vidas, que envolve também a dimensão da espiritualidade. 

“Faz parte da metodologia do movimento religioso Missão Belém que os acolhidos que se recuperam dos vícios e sentem a ‘vocação’ a fazer parte da Missão, depois de frequentar um curso de cuidadores, tomem conta desses irmãos doentes, de maneira completamente gratuita, formando ‘famílias acolhedoras’”, afirmaram Irmã Cacilda e o Padre Gianpietro. 

Eles recordaram, ainda, que em 16 anos já foram realizados cerca de 150 mil acolhimentos, o equivalente a 7 milhões de “diárias”. 

“Se o governo tivesse tido que pagar somente R$ 20,00 por dia para oferecer uma marmita a cada um desses acolhidos, teria gastado R$ 145 milhões, isso sem contar cama, banho, roupa, cuida- dos especiais para os doentes. A Missão Belém, na sua pobreza e simplicidade, recebeu essas pessoas da melhor forma possível, como irmãos, mas se, no futuro, a Prefeitura pudesse ajudar pelo menos com a comida e a roupa, a nossa missão fluiria melhor, sem dúvida”, comentaram. 

FALTAM DETALHAMENTOS 

Apesar da expectativa gerada desde que a lei foi sancionada, ainda faltam detalhamentos acerca do funcionamento. O Artigo 7º da legislação diz que o “Auxílio Reencontro” “será pago na forma disciplinada em regulamento”; e no Artigo 8º, §2º, é informado que “terá o valor e a duração definidos em decreto”. Até o fechamento desta edição, porém, nem o regulamento nem o decreto municipal haviam sido anunciados. A única atualização foi a publicação, no sábado, 9, do decreto 61.564, que regulamenta como será custeado o Fundo de Abastecimento Alimentar de São Paulo, que contempla verbas para o Programa Reencontro, incluindo seus auxílios e subvenções. 

“Ainda não disseram qual vai ser o critério para o recebimento do auxílio, qual será o valor, como vai funcionar, como a família será escolhida, como as pessoas vão se inscrever, e por quanto tempo. Eles lançaram uma ideia no ar, mas sem um conteúdo”, lamentou o Padre Júlio Lancellotti, Vigário Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, garantindo, ainda, que a medida foi definida pela Prefeitura sem dialogar com os grupos que atuam em favor das pessoas em situação de rua. 

Frei José Francisco, Diretor-Presidente do Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras), lembrou que o auxílio se trata de uma ação emergencial, com um recurso temporário. “Toda medida que busque amenizar o sofrimento urgente das pessoas em situação de rua é bem-vinda. O Sefras tem defendido, porém, que as ações destinadas a esse público estejam articuladas com as demais políticas públicas de transformação social como saúde, educação, moradia, assistência social e trabalho, para tirar em definitivo essa população da rua.” 

O Frade observou que a instituição ainda não tem condições de se posicionar sobre uma eventual adesão ao projeto: “Para isso, é importante ter o maior número de informações possível sobre o seu funcionamento e os processos que serão realizados para gerar autonomia a esta população, e estes são elementos que ainda não temos”. 

PREOCUPAÇÕES 

Ainda de acordo com Frei José Francisco, qualquer programa destinado à população em situação de rua precisa estar articulado com outras políticas públicas. Assim, em seu entender, o “Auxílio Reencontro” deve ser mais bem debatido em relação a seus potenciais riscos e benefícios. 

“Alguns pontos a serem discutidos passam pela complexidade da construção de vínculos e a criação de afeto com essas famílias, a vivência comunitária, a segurança e integridade dos atendidos etc. Os questionamentos precisam estar direcionados nesse sentido, principalmente porque o auxílio tem caráter temporário. O que acontecerá com essas pessoas em médio e longo prazo? Além disso, é preciso considerar que os atendidos são acometidos por problemas complexos, inclusive no aspecto de saúde física e mental. Não existe, ainda, um detalhamento a respeito disso e é preciso tê-lo”, concluiu Frei José.  

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