
“Encíclica verde do Papa”, “documento histórico sobre o aquecimento global”, “encíclica papal dedicada ao meio ambiente” foram algumas das primeiras referências na imprensa sobre a encíclica Laudato si’ (LS), divulgada em 18 de junho de 2015, mas assinada pelo Papa Francisco semanas antes, em 24 de maio daquele ano.
Dirigida não só aos católicos, mas “a cada pessoa que habita este planeta” (LS 3), a Laudato si’, em seis capítulos e 246 itens (parágrafos), apresenta reflexões sobre a urgência do cuidado da Casa Comum, o que envolve pensar o meio ambiente não apenas na perspectiva da “ecologia verde”, mas também as relações entre os seres humanos e destes com a obra da criação, como fez São Francisco de Assis, “exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade” (LS 10).
Algumas ideias centrais da encíclica são “a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo, a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia, o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional e local, a cultura do descarte e a proposta de um novo estilo de vida” (LS 16).
MUDANÇAS CLIMÁTICAS
No capítulo inicial – “O que está acontecendo com nossa casa” (LS 17-61) – Francisco trata sobre os aspectos da atual crise ecológica, como a poluição, a cultura do descarte (de objetos a pessoas), a perda da biodiversidade e a degradação da qualidade de vida.
O Papa também traz as reflexões sobre os impactos das ações humanas nas mudanças climáticas, com suas consequentes implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas (cf. LS 25).
“Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos atuais de produção e consumo” (LS 26).

O PARADIGMA TECNOCRÁTICO E O HOMEM QUE QUER SER DEUS
Após trazer argumentações das Sagradas Escrituras e da tradição judaico-cristã sobre o cuidado com a criação – tema do capítulo 2 – “O Evangelho da Criação” (LS 62-100) – Francisco discorre, no capítulo 3, sobre a “A raiz humana da crise ecológica” (LS 101-136), apontando especialmente para o atual paradigma tecnocrático.
“Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora… É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação… agora, o que interessa é extrair o máximo possível das coisas por imposição da mão humana, que tende a ignorar ou esquecer a realidade própria do que tem à sua frente… Isso supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta, que leva a ‘espremê-lo’ até o limite e para além do mesmo” (LS 106), explica; e mais adiante, alerta: “Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque ‘em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza’” (LS 117).
O CAMINHO DA ECOLOGIA INTEGRAL
Ideia muito propagada desde a publicação da encíclica, a “Ecologia Integral” é apresentada no capítulo 4 (LS 137-162) como aquela capaz de reestabelecer uma relação harmônica entre os seres humanos e destes com a toda a obra da criação.
“Quando falamos de ‘meio ambiente’, fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isso nos impede de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida… É fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental” (LS 139).
Trata-se, portanto, de uma discussão sobre a ecologia que vai além das questões do meio ambiente, e que aponta também para aspectos sociais, culturais, de qualidade de vida cotidiana – habitação, trabalho, espaços públicos, sistemas de transporte, planejamento das cidades (cf. LS 142-153) –, em vista de se alcançar o Bem Comum (cf. LS 156), com solidariedade aos mais pobres (cf. LS 158) e atenção sobre qual planeta será deixado às futuras gerações (cf. LS 159-161).
LINHAS DE AÇÃO; EDUCAÇÃO E ESPIRITUALIDADE ECOLÓGICAS
No capítulo 5, Francisco indica “Algumas Linhas de Orientação e Ação” (LS 163-201) em vista da Ecologia Integral no cotidiano individual e comunitário, bem como nas políticas nacionais e internacionais: “Pensando no Bem Comum, hoje precisamos imperiosamente de que a política e a economia, em diálogo, se coloquem decididamente a serviço da vida, especialmente da vida humana” (LS 189). Neste caderno, estas perspectivas são especialmente tratadas por pessoas e organizações que se valem da Laudato si’ para suas ações e análises nas questões ambientais (leia nas páginas 2 e 3).
Por fim, no capítulo 6 – “Educação e Espiritualidade Ecológicas” (LS 202-246), cujos apontamentos estão detalhados na última página deste conteúdo especial, Francisco enfatiza que a base para a mudança da relação do ser humano com sua Casa Comum requer que todas as pessoas reconheçam ter uma origem comum, uma recíproca pertença e um futuro a ser partilhado.
Passados dez anos de sua publicação, a encíclica Laudato si’ se mantém atual, é um dos grandes legados do Papa Francisco – falecido há um mês, em 21 de abril – para a Igreja e todo o mundo, e continua a inspirar projetos locais e globais, como foi em 2015 para o Acordo de Paris que visa a limitar o aumento da temperatura global, e como será no fim deste ano na conferência do clima da ONU, a COP30, em Belém (PA), cujos organizadores recentemente afirmaram assumir a Laudato si’ como “uma bussola ética e um guia pragmático para a mobilização global” diante da atual urgência climática.