Em tempos de isolamento social, católicos redescobrem o valor da comunhão espiritual como meio para cultivar o amor pelo corpo e sangue de Cristo
“Todas as vezes que comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos, Senhor, a vossa morte, enquanto esperamos vossa vinda”. Por meio desta aclamação, feita logo após a consagração da missa, os católicos manifestam a fé da Igreja na Eucaristia como memorial da paixão, morte e ressurreição de Jesus e a certeza de que Cristo permanece vivo em suas vidas até sua vinda gloriosa.
Porém, assim como no ano passado, devido à pandemia do COVID-19, a maioria dos fiéis celebrará a Páscoa sem se aproximar do altar e comungar sacramentalmente do corpo e sangue de Cristo. Eles se unem em oração aos bispos e padres através dos meios de comunicação e comungam espiritualmente, alimentando a esperança de um dia poderem receber o corpo e sangue de Cristo novamente.
“Nesta situação de pandemia, na qual nos encontramos vivendo mais ou menos isolados, somos convidados a redescobrir e aprofundar o valor da comunhão que une todos os membros da Igreja. Unidos a Cristo, nunca estamos sozinhos, mas formamos um único Corpo, do qual Ele é a Cabeça. É uma união que se alimenta com a oração e também com a comunhão espiritual à Eucaristia, uma prática muito recomendada quando não é possível receber o Sacramento”, afirmou o Papa Francisco, após a oração do Angelus de 15 de março de 2020.
Alimento eterno
É certo que Jesus ressuscitado está presente na Igreja de diversas maneiras, na sua Palavra, na oração da Igreja – “onde dois ou três estão reunidos em Meu nome…” (Mt 18,20) –, nos pobres, nos doentes, nos prisioneiros, nos seus sacramentos, dos quais é o autor, e na pessoa do ministro ordenado que preside a missa. No entanto, a doutrina católica ressalta ser sobretudo sob as espécies eucarísticas que o Senhor manifesta sua presença por excelência.
O ápice da participação na Eucaristia é a comunhão. É o próprio Jesus que convida: “Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós” (Jo 6,53).
O principal fruto da comunhão eucarística é a união íntima com Cristo Jesus. “De fato, o Senhor diz: ‘Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele’ (Jo 6,56). A vida em Cristo tem o seu fundamento no banquete eucarístico: ‘Assim como o Pai, que vive, me enviou, e Eu vivo pelo Pai, também o que me come viverá por Mim’ (Jo 6,57) ”, recorda o Catecismo da Igreja Católica (1396), que enfatiza, ainda, que a comunhão da “carne de Cristo Ressuscitado” conserva, aumenta e renova a vida da graça recebida no Batismo.
União com Cristo
Santo Tomás de Aquino afirmou que “o efeito típico da Eucaristia é a transformação do homem em Cristo”. Já São Leão Magno destacou: “A participação do corpo e sangue de Cristo não faz outra coisa senão transformar-nos no alimento que tomamos”.
Santo Agostinho pôs na boca de Jesus estas palavras: “Não és tu que me transformarás em ti, como se dá com o alimento da tua carne, mas tu será transformado em mim”. E Cirilo de Jerusalém enfatizou que, por meio da Eucaristia, “nos tornamos concorpóreos e consanguíneos com Cristo”.
Na prisão
Para muitas pessoas, esse período distante da Eucaristia é a oportunidade de tomar consciência do valor da comunhão sacramental para a vida espiritual e se unir a muitos cristãos que, por diversas razões, há muito tempo são impedidos de celebrar a Eucaristia.
Na história recente da Igreja, o Cardeal vietnamita Francisco Xavier Nguyen Van Thuan (1928-2002) é, sem dúvida, um dos maiores exemplos de amor à Eucaristia. Arcebispo coadjutor de Saigon, ele foi mantido prisioneiro pelo regime comunista durante 13 anos, dos quais nove foram em total isolamento. Mesmo assim, ele consegui celebrar a Eucaristia clandestinamente em sua cela com um pedaço de pão, três gotas de vinho e uma gota d’água na palma da mão.
O próprio cardeal vietnamita contou, em uma das meditações do retiro que pregou no Vaticano no jubileu do ano 2000, que, quando foi preso, em 1975, um angustiante pensamento apoderou-se dele: “Poderei ainda celebrar a Eucaristia? No momento em que tudo veio a faltar, a Eucaristia passou a ocupar o primeiro lugar em meus pensamentos: o Pão da Vida”.
Pão da esperança
Van Thuan recordou, ainda, que, em todas as épocas, especialmente em tempos de perseguição, a Eucaristia foi sempre o segredo da vida dos cristãos, “o alimento das testemunhas, o pão da esperança”.
Papa Francisco sempre nutriu muita estima pelo exemplo dos chamados “cristãos escondidos” do Japão nos séculos XVI e XVII. Evangelizados por São Francisco Xavier, os católicos japoneses eram em torno de 300 mil em 1614, quando o cristianismo foi banido no país, os missionários foram expulsos e os fiéis foram forçados a escolher entre o martírio ou viver a fé clandestinamente.
Em 1873, o cristianismo deixou de ser proibido no Japão e, quando os sacerdotes retornaram ao país, encontraram grupos de cristãos que conservaram secretamente a fé por gerações e desejavam voltar a celebrar a Eucaristia. “Eram isolados e escondidos, mas eram sempre membros do povo de Deus, membros da Igreja”, afirmou o Papa Francisco, na Audiência Geral de 15 de janeiro de 2014.
Cultivar o amor
Na Encíclica Ecclesia de Eucharistia, São João Paulo II enfatizou que é conveniente cultivar continuamente na alma o desejo do sacramento da Eucaristia. “Daqui nasceu a prática da ‘comunhão espiritual’ em uso na Igreja há séculos, recomendada por santos mestres de vida espiritual”, afirmou o Santo Padre, recordando que Santa Teresa de Jesus escreveu: “Quando não comungais e não participais na missa, comungai espiritualmente, porque é muito vantajoso. […] Deste modo, imprime-se em vós muito do amor de nosso Senhor”.
Santa Catarina de Sena temia que a comunhão espiritual não tivesse nenhum valor. “Jesus lhe apareceu em visão, com dois cálices na mão, e lhe disse: ‘Neste cálice de ouro ponho as tuas comunhões sacramentais e neste cálice de prata ponho as tuas Comunhões Espirituais. Estes dois cálices me são muito agradáveis’”, conta a Santa em seus escritos biográficos.
São várias as orações de comunhão espiritual existentes na tradição católica. Nas suas missas diárias na Casa Santa Marta, o Papa Francisco tem convidado os fiéis que acompanham pelos meios de comunicação a fazerem a seguinte oração:
“Aos vossos pés, ó meu Jesus, me prostro e vos ofereço o arrependimento do meu coração contrito que mergulha no vosso e na Vossa santa presença. Eu vos adoro no Sacramento do vosso amor, desejo receber-vos na pobre morada que meu coração vos oferece. À espera da felicidade da comunhão sacramental, quero possuir-vos em Espírito. Vinde a mim, ó meu Jesus, que eu venha a vós. Que o vosso amor possa inflamar todo o meu ser, para a vida e para a morte. Creio em vós, espero em vós. Eu vos amo. Assim seja.”
(Reportagem publicada originalmente em 14 de abril de 2020)