A Missão Belém resiste no ‘caos infernal’ do Haiti

País caribenho vive escalada de violência e de tensões políticas. Em meio a dificuldades, missionários mantêm atendimentos em escola e em unidade de saúde na capital, Porto Príncipe

No Haiti, a Missão Belém está na favela de Wharf Jeremie; com a ajuda de benfeitores, mantém uma escola e um serviço de atendimento em saúde
Fotos: Missão Belém

Nas últimas semanas, o Haiti voltou ao noticiário internacional devido à crescente onda de violência. Gangues têm saqueado comércios, vandalizado prédios públicos e hospitais, e libertado presos. Além disso, mais de 360 mil pessoas já foram forçadas a deixar suas casas e até religiosos têm sido sequestrados.

Diante dessa realidade, na sexta-feira, 22, o Conselho Episcopal da Latino-Americano e Caribenho (Celam), a Confederação Latino-americana e Caribenha de Religiosos (Clar) e a Cáritas América Latina realizaram o dia continental de oração “Todos com o Haiti”.

Também o Papa Francisco tem manifestado sua preocupação com o povo haitiano. No dia 17, após a oração do Angelus, ele pediu que os atores políticos e sociais do Haiti “se comprometam, em um espírito de solidariedade, com a busca do bem comum, apoiando uma transição pacífica em direção a um país que, com a ajuda da comunidade internacional, seja dotado de sólidas instituições capazes de restaurar a ordem e a tranquilidade entre seus cidadãos”.

OS CRIMINOSOS NO COMANDO

Em 11 de março, o primeiro-ministro Ariel Henry renunciou ao cargo. Ele estava no comando do Haiti desde julho de 2021, após o assassinato do então presidente Jovenel Moise. Na ocasião, em um acordo alinhado pela Comunidade do Caribe (Caricom), ficou decidido que Henry convocaria eleições em até um ano, o que não aconteceu. Desde então, o que se vê é um progressivo aumento de tensões.

“O Haiti está um caos infernal”, assegura o Padre Gianpietro Carraro, fundador da Missão Belém. Desde 2010, a pedido do Cardeal Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo, a Missão Belém está no Haiti e mantém na favela de Wharf Jeremie, em Porto Príncipe, capital do país, uma escola para 3 mil crianças e adolescentes, além de uma unidade de saúde. Semanalmente, o Padre conversa on-line com os seis missionários que lá estão – cinco brasileiros e um italiano.

O Sacerdote explicou ao O SÃO PAULO que Ariel Henry deu continuidade à prática de Moise de financiar grupos criminosos e fornecer-lhes armas para que controlem territórios. Com isso, tornou-se cena comum as brigas entre as gangues de uma mesma localidade. Nos últimos meses, porém, o que se viu foi uma “pacificação” entre elas e a criação de uma espécie de “aliança de gangues”, o G9, liderado pelo ex-policial Jimmy Charizier, mais conhecido como Barbecue.

“O Haiti não tem presidente, não tem primeiro-ministro. Quem está governando? Ninguém! Quem, por exemplo, vai pagar o salário dos policiais? Aliás, existem 9 mil policiais e calcula-se em 40 mil o número de bandidos. O que se vai fazer? A palavra de ordem de Barbecue foi destruir o país até que Ariel Henry se retirasse do poder”, diz o Padre Gianpietro.

Com a renúncia de Henry, a Caricom anunciou que será criado um conselho de transição presidencial, a fim de que se viabilize a realização de eleições. Na última semana, houve avanços sobre os nomes que irão compor este conselho, mas ainda sem oficializações.

EM MEIO A TENSÕES, A MISSÃO CONTINUA

Em Wharf Jeremie, o centro-escola da Missão Belém atende diariamente a 3 mil crianças e adolescentes, do berçário ao ensino médio.

“Recentemente, conseguimos comprar dois caminhões de comida, já que nosso estoque estava quase no fim. Os nossos estudantes fazem três refeições, ou seja, são 9 mil refeições diárias. Antes dessa compra, o que tínhamos era suficiente para apenas dois dias e meio”, detalha Padre Gianpietro.

Também é mantido pela Missão Belém um centro de saúde, que já funciona provisoriamente, e que em breve terá uma estrutura definitiva, com uma unidade básica de saúde (UBS) e de pronto atendimento (UPA). “Atendemos de 100 a 130 pessoas por dia. Há dificuldades, pois nem sempre os médicos conseguem chegar, assim como acontece com os professores”, explica o Sacerdote.

Questionado se teme que a sede da Missão Belém seja alvo de ataques de gangues, Padre Gianpietro diz acreditar que os criminosos que vivem no bairro dificilmente permitirão que isso aconteça. “Nenhuma escola no Haiti atende esta quantidade de alunos e nossa unidade de saúde permanece aberta dia e noite. Agora, dá pra dizer que com isso estamos seguros? Não sei. O que sei é que Deus é seguro”, comenta, destacando que a localização da sede da Missão dificultaria eventuais ataques: “A nossa missão está instalada em cima de um lixão. De um lado, há um canal de esgoto muito largo, que é difícil de ser atravessado; do outro, está o oceano; e de outro lado há o porto. O acesso só é possível pela parte da frente”.

Diante de um ambiente instável, porém, tudo é possível. Padre Gianpietro comenta que Barbecue, com o objetivo de fortalecer a união dos criminosos, tem estimulado que façam uma espécie de sacrifício, ou seja, que uma gangue seja autorizada a entrar em território controlado por outra e realizar pilhagem: saquear comércios, promover quebra-quebras, além de matar pessoas, prática que o líder dos criminosos em Wharf Jeremie ainda não permitiu que aconteça no local.

“Eu sempre digo que Deus é mais. Só Ele que nos defende. Outro dia, enquanto conversava on-line com um dos nossos missionários, entrou uma bala por uma das janelas da sede da Missão lá no Haiti. Foi atirada por um fuzil a dois quilômetros de distância. Recentemente, outra bala atingiu uma de nossas alunas. Por um milagre, não perfurou o pescoço dela. Diante dessas situações, por segurança, os nossos missionários não têm saído às ruas, até para evitar o risco de sequestros”, detalha.

ESPERANÇA, FÉ E SOLIDARIEDADE

Padre Gianpietro afirma não ter certeza de como serão as celebrações da Semana Santa e do Domingo de Páscoa no Haiti. Ele lembra que os missionários têm feito a celebração da Palavra aos domingos na capela da Missão, com a participação de 300 a 400 pessoas. Em anos anteriores, na Semana Santa foram feitas as estações da via-sacra pelas ruas de Wharf Jeremie. “A vida dos nossos missionários no Haiti já é a própria via-sacra”, diz.

O Sacerdote comenta ainda que tem evitado ir ao Haiti pelo fato de ele e a Irmã Cacilda da Silva Leste, cofundadora da Missão, já terem sido identificados pelos criminosos como alvos para sequestros: “Temos receio, mas não por nossas vidas. Os bandidos pedem de 100 mil a 1 milhão de dólares em resgate quando sequestram alguém. Não temos este dinheiro. Portanto, nossa ida ao Haiti pode criar mais problemas do que ajudar”.

A todos os católicos no Brasil, Padre Gianpietro pede que direcionem suas práticas quaresmais em favor da Missão Belém: “O jejum potencia a oração, e nós precisamos de oração. Afinal, quem convencerá os bandidos, a não ser o Espírito Santo? Quem protege nossos missionários é Deus. Por isso, em primeiro lugar, peço a oração. E o jejum que também se torna partilha. Temos 3 mil crianças e jovens. E como os mantemos? Cada um é apadrinhado com R$ 50 ou R$ 100 por pessoas do Brasil e da Itália. Porém, hoje somente 1,5 mil são apadrinhados. Diante disso, dividimos este bolo de doações. Oração, jejum e partilha: é isso que pedimos”.

É possível conhecer os trabalhos da Missão Belém no Haiti e apadrinhar uma criança ou adolescente por meio do site: https://www.missaobelem.org.

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