Cardeal Pizzaballa: ‘Nesta guerra, nós, cristãos, estamos lutando para permanecer unidos’

ACN

Na sexta-feira, 6, a fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (ACN) promoveu uma coletiva de imprensa on-line com o Cardeal PierbattistaPizzaballa, Patriarca Latino de Jerusalém, a respeito da situação dos cristãosno Oriente Médio, especialmente em territórios de conflitos como Israel, Líbano, Síria, Gaza e Cisjordânia. 

Participaram da coletiva, com duração de cerca de 50 minutos, mais de 80 pessoas, entre jornalistas, profissionais e sacerdotes de diversas instituições de todo o mundo, incluindo o jornal O SÃO PAULO

Também foi uma oportunidade para que o Prelado respondesse a algumas perguntas sobre como aqueles cristãos se preparam para celebrar mais um Natal sob a sombra da violência e do medo e como lidam com uma crise aparentemente sem fim.

Leia, a seguir, os principais trechos abordados pelo Patriarca.

O que tem sido diferente neste conflito em comparação aos anteriores? 

Cardeal Pierbattista PizzaballaNão é a primeira vez que temos uma guerra na Terra Santa. No entanto, esta é diferente. Há uma espécie de “ponto de virada”, ou seja, há um antes de 7 de outubro de 2023 [data em que o grupo terrorista Hamas iniciou um ataque contra a população de Israel] e um depois. A forma de violência e a maneira como tudo aconteceu foram distintas. O impacto disso em israelenses e palestinos tem sido enorme do ponto de vista emocional. 

Para os israelenses, o que aconteceu naquele dia no Sul do país ainda é um trauma, um shoah [holocausto], que impactou de forma muito pesada a vida de todos. E o fato de ainda haver reféns israelenses em Gaza é algo que está, de certa forma, vinculando as emoções da sociedade israelense em outros países. 

Para os palestinos, por sua vez, o que aconteceu depois de 7 de outubro, especialmente em Gaza, e na Cisjordânia, afetou fortemente, do ponto de vista emocional, as suas vidas e a sua perspectiva para o futuro. O que está acontecendo atualmente em Gaza para os palestinos é uma espécie de nova nakba [termo que significa catástrofe, desastre, em referência à guerra árabe-israelense de 1948, marcada pelo êxodo enfrentado pela população palestina], uma tentativa de transferi-los para fora da terra, da terra sagrada, e assim por diante

A situação é também dramática do ponto de vista econômico. Em Gaza, nada está funcionando. Quase 2 milhões de pessoas estão deslocadas, o que representa 90% da população. 

Como a Igreja Católica responde à sensação de apatia em encontrar uma solução para o conflito Israel-Palestina?

Não usarei a palavra apatia. Não há apatia. É difícil, porém, encontrar uma solução agora, sobretudo uma solução política. Cada um tem sua própria agenda, com seus motivações e convicções. E as diferentes agendas, de palestinos, de israelenses, do Hamas, seja lá o que for, são opostas umas às outras.

Chegamos a um ponto em que é quase impossível encontrar uma solução, simplesmente porque não há condições. É preciso, antes de tudo, vontade política. É necessária uma liderança política que seja capaz de pensar em uma solução, que queira uma solução que seja abrangente, que não é o que estamos vendo agora. Então, não por causa da apatia, mas pelo oposto da apatia.

Como os cristãos de Gaza estão se preparando para o Natal? Eles podem esperar o Natal? 

Para exemplificar: a Paróquia Sagrada Família, em Gaza, é uma paróquianormal, que, no entanto, vive em condições extraordinárias; quero dizer, é reconfortante a maneira como aqueles paroquianos estão vivendo sob as condições atuais, justamente porque eles não reclamam de nada. 

Eles tentarão viver o Natal o máximo que puderem, na precariedade que experimentam. Em primeiro lugar, eles estão todos juntos, reunidos. Eles também se esforçarão para fazer com que o Natal seja a festa das crianças, pois elas são o foco. De nossa parte, além de tentarmos fazer com que tenham comida, vamos levar alguns brinquedos, algo que fará a diferença na vida cotidiana das crianças e trará alegria às famílias. 

Tentamos fazer com que o Natal seja o mais normal possível, dadas as circunstâncias extraordinárias que eles têm. Então, melhor comida, festa, algo para as crianças e, claro, muita oração. 

O Papa Francisco tem ligado todos os dias na Paróquia, às 19h, e se mostra próximo ao dizer palavras de estímulo aos fiéis. Ele se tornou o “avô” das crianças, porque elas sabem que é ele que liga todos os dias, no mesmo horário. E para a comunidade de Gaza, é um apoio muito grande: psicológico, emocional e espiritual. 

Como o senhor encontra esperança e força em seu ministério, apesar de todos os desafios e dificuldades na região do Oriente Médio? 

A esperança é uma atitude de vida. Como sempre digo, a esperança é filha da fé. A esperança é uma maneira de ver a realidade da sua vida com fé.

A fé é acreditar na presença de Deus que transcende nossa vida terrena. Então, se você vê de acordo com a fé, é capaz de ver algo que transcende, que vai além da realidade sombria em que vivemos. Isso só pode ser feito pela fé.

Eu tenho que dizer isso em qualquer lugar, e isso ainda é possível. Eu sei, porém, que muitos não acreditam. É uma realidade. Isso é real. Eu encontro em todos os lugares, de Gaza a Cisjordânia, a Jerusalém, a Israel, em todos os lugares, encontro pessoas maravilhosas que estão prontas a se comprometer, que se engajam a fazer algo pelo outro.

E onde há esses atos de amor, amor gratuito, há esperança, ou seja, significa que é possível mudar algo. Talvez não possamos mudar a situação macropolítica, mas podemos mudar algo onde estamos. Então, há muita esperança lá.

E é isso que também me consola e conforta. Porque, às vezes, também me sinto impotente, às vezes frustrado, porque vejo muitos problemas, questões em todos os lugares. Quando, porém, conheço todas essas pessoas, vejo todas essas coisas maravilhosas que ainda são feitas por todos esses voluntários em todas as partes da nossa igreja, especialmente a mais problemática, eu digo que ainda há esperança, porque ainda há pessoas engajadas, comprometidas em fazer algo pelo outro.

Siria
O Patriarcado Latino de Jerusalém planeja integrar às celebraçõesnatalinas alguns atos de solidariedade com os mais vulneráveis na Terra Santa ou algo para enfrentar a crise humanitária, especificamente para o Natal

Antes de tudo, é preciso lembrar que o Natal do ano passado já foi celebrado com um perfil muito mais simples por causa da guerra. Este ano, claro, o Natal precisa ser celebrado novamente, e nós nos esforçamos para também trazer alegria à comunidade. Tudo o que está conectado à celebração do Natal será em solidariedade às pessoas mais afetadas em Gaza e na Cisjordânia. 

Conseguimos levar comida, que é tão necessária, não apenas para a nossa comunidade de Gaza, mas para outras 4 mil famílias da região, que embora não seja suficiente para todos, é uma iniciativa que tem o nosso apoio. Criamos um programa de oportunidades de emprego para aqueles que na Cisjordânia permanecem sem trabalho. E tantas outras iniciativas de apoio.

Portanto, o apoio humanitário que estamos fazendo não é apenas em razão do Natal, mas por causa da nossa identidade como Igreja. Não podemos ser Igreja, falar de Jesus, amar o próximo, se não traduzirmos em ação o amor que temos. 

Dado o bloqueio político e militar, quais são os desafios para garantir que a ajuda humanitária chegue às pessoas mais vulneráveis em Gaza? 

Introduzir alimentos e suprimentos em Gaza é muito complicado, especialmente no Norte daquela região. É necessário coordenar as ações com muitas entidades de ambos os lados da fronteira. Somos teimosos, porém. Nãoparamos no primeiro obstáculo. 

Demorou um pouco, e agora temos alguns canais que nos permitem chegar aonde estamos. Temos um ponto forte em comparação com outras organizações: temos uma comunidade em Gaza.

Então, temos um ponto de referência lá, de fiéis que conhecem o território, as pessoas, e também estão se engajando na distribuição. Um dos problemas em Gaza não é apenas trazer [os alimentos e suprimentos], mas como distribuí-los, porque não há autoridade para fazer isso. Temos uma comunidade, que é, a propósito, algo maravilhoso.

Eles estão todos engajados e se organizam para dividir em grupos o que recebem. Eles têm a lista de famílias: aquelas com três componentes, com cinco, com dez. Então, eles dividem as provisões de acordo com o tamanho das famílias e se envolvem nessa tarefa. Isso cria também uma bela atmosfera na comunidade porque eles têm um propósito.

Eles não estão apenas esperando o perigo chegar, as bombas. Eles estão lá também para ajudar os outros e criar uma maravilhosa rede de solidariedade entre todas as famílias, não apenas os cristãos. Isso é o que, até agora, somos capazes de fazer.

Tivemos problemas e ainda os temos aqui e ali, mal-entendidos, dificuldades e assim por diante. Como disse, porém, somos teimosos.

A Igreja Latina é especial porque se faz presente em Gaza, na Palestina, na Cisjordânia, em Jerusalém, em Israel, enfim, em todos os lugares daquela região. Quais as dificuldades de ministrar em ambientes tão diversos?

É típico da Igreja Latina que tenhamos todas essas composições diferentes. Claro, numericamente, a presença principal são os cristãos árabes, mas temos todos os outros, trabalhadores estrangeiros, católicos, jordanianos, israelenses etc. 

Nesta guerra, muitos estão lutando para se dividir, mas nós, cristãos, estamos lutando para permanecer unidos. O que não é simples, especialmente no primeiro período da guerra não foi simples manter unidas todas essas diferenças. Claro, somos cristãos, temos o mesmo Jesus, a mesma fé, a mesma Igreja, mas também todos têm sua própria visão política e ideais. Estamos unidos, porém não uniformizados.

Não há uniformidade entre nós e tem sido um desafio, tenho que reconhecer. Agora está muito melhor. No começo, foi um pouco difícil todas essas diferenças. Agora, porém, com certeza, depois da guerra, temos que falar sobre todas as nossas diferenças e qual é o propósito da unidade, qual é o significado da unidade, que é importante, dadas todas as dificuldades que tivemos entre todos nós. Isso, no entanto, também é algo muito saudável.

Acho que essa guerra, para nós, cristãos, mas também no nível inter-religioso – quero ampliar um pouco a resposta –, com todas as feridas dentro das relações, nos ajuda agora a nos forçar, se me permite dizer, a dar um passo à frente. Agora, temos que crescer em nossas relações para termos laços muito mais profundos, muito sérios e muito fortes entre nós. Porque durante este ano, nem sempre nos entendemos corretamente.

O senhor tem alguma declaração a fazer sobre a situação dos cristãos sírios, especialmente os de Aleppo? E, dependendo do que vier a acontecer na Síria, como isso poderia afetar a Terra Santa? 

Tudo está conectado e, também, desconectado. Estamos conectados e desconectados ao mesmo tempo. O Oriente Médio é complicado. O Oriente Médio é uma coisa, e é o oposto ao mesmo tempo. De qualquer forma, a situação dos cristãos na Síria, em Aleppo especialmente, com a entrada do controle da cidade sob os rebeldes, requer cautela.

No começo, havia – e ainda há – muito medo sobre o que vai acontecer. Temos que dizer que depois do primeiro dia, primeiros dois, três dias, há muito menos violência agora na cidade. Esses rebeldes tentam mostrar que não são violentos, não são contra os cristãos.

Acho que alguns deles também encontraram os bispos latinos locais e os demais bispos. É muito cedo ainda para entender como será, porque esses rebeldes são compostos de grupos muito diferentes de um para o outro. Temos que ver com o tempo como as coisas vão se desenvolver.

Agora não sabemos exatamente. Há muito medo e muitos problemas também do ponto de vista econômico. Os preços estão descontrolados e isso já era problemático antes. Muitos já tentaram escapar de Aleppo. Outros permaneceram. Acho que temos que apoiá-los.

Não sabemos o que vai acontecer, mas temos que apoiar especialmente os cristãos que decidiram permanecer lá. No momento mais difícil da guerra, na fase anterior da guerra, muitos decidiram permanecer. Eles tiveram a possibilidade de sair.

E agora temos que apoiá-los, especialmente agora, porque temos que dizer que eles não estavam errados quando decidiram permanecer. E queremos apoiá-los. Do ponto de vista prático, contudo, é muito difícil saber como isso se desenvolverá.

Como os recentes acontecimentos na Síria poderão afetar a Terra Santa? 

A situação dos cristãos na Síria, em Aleppo especialmente, com a entrada do controle da cidade sob os rebeldes, requer cautela. 

No começo, havia – e ainda há – muito medo sobre o que vai acontecer. Temos que dizer que depois dos primeiros dias, há muito menos violência agora. Esses rebeldes tentam mostrar que não são violentos, não são contra os cristãos. 

É muito cedo ainda para entender como será, porque esses rebeldes sãocompostos de grupos muito diferentes uns dos outros. 

Há muito medo e muitos problemas também do ponto de vista econômico. Os preços estão descontrolados e isso já era problemático antes. Muitos já tentaram escapar de Aleppo. Outros permaneceram e temos que apoiá-los. Do ponto de vista prático, contudo, é muito difícil saber quais serão as consequências que os recentes fatos podem ter sobre Israel. Temos que entender se a conexão entre Irã, Iraque, Síria, Líbano será quebrada ou não. 

Como isso está relacionado, quais consequências isso pode ter sobre Israel, do ponto de vista político, é muito difícil de entender agora. Temos que entender se essa conexão entre Irã, Iraque, Síria, Líbano, será quebrada ou não. Este é um dos aspectos que temos que entender.

O cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah é um sinal de que a paz em Gaza chegará em breve? E qual será, na sua opinião, o futuro para a região?

Acredito que o pico da guerra em Gaza ficou para trás. E o cessar-fogo com o Líbano, com o Hezbollah, é claro, também pode ter influência em Gaza e nas relações com a entidade política Hamas. Temos que esperar um pouco. 

Acho que é possível que nas próximas semanas, nos próximos meses, chegaremos a algum compromisso. Friso, no entanto, que o fim da hostilidade militar não é o fim do conflito: enquanto não houver uma perspectiva políticamuito clara, confiável, séria e sólida, haverá conflito. Como será depois que as operações militares acabarem? Quem estará lá? Não será o Hamas. O governo israelense não quer Abu Maaz [codinome de um dos comandantes do Hamas] e a Autoridade Palestina. Então, quem estará lá? Como será a vida? Levará anos para reconstruir Gaza. É preciso uma perspectiva política lá. E tenho certeza de que a fronteira com Israel permanecerá hermeticamente fechada. 

Então, qual será o futuro desses 2 milhões de pessoas? Então, o fim da hostilidade militar não é o fim do conflito, enquanto não houver uma perspectiva política muito clara, confiável, séria e sólida.

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