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Cristãos em Gaza tentam retomar atividades pastorais após cessar-fogo

Após dois anos de guerra, a trégua entre Israel e o Hamas permite a retomada parcial da vida social e religiosa na região, mas a falta de infraestrutura e os bloqueios nas fronteiras ainda são complicadores 

‘Precisamos reconstruir não apenas as casas, mas também o tecido humano e espiritual’, diz o Cardeal Pizzaballa sobre a situação em Gaza
Fotos: Patriarcado Latino de Jerusalém/Arquivo 

O silêncio que toma conta de Gaza carrega, ao mesmo tempo, medo e esperança. Os ouvidos acostumados às sirenes e explosões agora percebem apenas o zumbido contínuo dos drones, lembrança de que o cessar-fogo ainda não significa paz. Apesar da tensão, muitos sonham em reconstruir a vida cotidiana e transformar os escombros em sinais de recomeço. 

CESSAR-FOGO NÃO É SINÔNIMO DE PAZ 

A trégua entre Israel e o Hamas interrompeu dois anos de violência que deixaram milhares de mortos e uma destruição quase total. Desde 10 de outubro, quando o cessar-fogo entrou em vigor, a pequena comunidade cristã de Gaza tem retomado lentamente suas atividades. 

“Não se deve confundir esperança com a solução do conflito, que não é imediata”, explicou o Cardeal Pierbattista Pizzaballa, Patriarca Latino de Jerusalém, em entrevista às mídias do Vaticano, na quinta-feira, 16. “O final da guerra não é o início da paz e não é o final do conflito. Levará tempo, porque as feridas são profundas. Mas não devemos desistir. Há, de qualquer forma, esperança de poder construir uma paz duradoura, mesmo que estejamos apenas dando os primeiros passos. Devemos acreditar nela, antes de tudo.”, prosseguiu. 

Apesar do alívio inicial, o Patriarca reconhece que o quadro humanitário continua grave. “A situação é dramática porque tudo está destruído. As pessoas estão voltando, mas voltando aos escombros.” Hospitais e escolas permanecem inoperantes, e a reconstrução das casas é dificultada pelos bloqueios nas fronteiras. 

Padre Gabriel Romanelli, Pároco da Paróquia da Sagrada Família, fez o mesmo alerta, por meio de um vídeo: “As pessoas perguntam com tristeza: como vamos reconstruir nossa casa sem a entrada dos caminhões com materiais de construção? Em breve, a temporada de chuva vai começar e, com ela, o frio. Isso pode se tornar o caos, porque a maioria da população não tem onde se abrigar”. 

UMA IGREJA VIVA ENTRE ESCOMBROS 

A comunidade cristã em Gaza, hoje com cerca de mil fiéis, é uma das mais vulneráveis da região. Mesmo diante da precariedade, as celebrações continuam, e os católicos voltam a se reunir nas missas dominicais. 

“O primeiro domingo sem bombas explodindo foi um sinal de que este cessar-fogo, se Deus quiser, será o fim desta guerra atroz”, afirmou Padre Gabriel Romanelli. Em suas palavras, ecoa o alívio dos refugiados que ainda vivem no complexo paroquial e daqueles que começam a regressar, mesmo entre ruínas e incertezas. 

Durante a missa, o Pároco convidou os fiéis a agradecerem a Deus pela fé que os sustentou e a viverem um gesto de reconciliação. “Perdoar todos aqueles que, voluntária ou involuntariamente, falharam, e pedir perdão por nossas próprias falhas”, recordou, citando São João Paulo II e reconhecendo o desafio de manter o perdão vivo após tanto sofrimento. 

Na Cisjordânia, porém, o quadro é mais delicado. O Cardeal Pizzaballa relatou que “não apenas as comunidades católicas, mas toda a população vive uma deterioração contínua”. Aldeias como Taybeh, Zababdeh e Aboud enfrentam crescente isolamento devido aos inúmeros postos de controle. “É uma espécie de território sem lei, onde ocorrem ataques e tensões constantes, sem uma autoridade clara a quem recorrer”, afirmou, manifestando preocupação com o medo e a insegurança que persistem entre as paróquias. 

NOVOS CONFLITOS E A ESPERA PELA PAZ 

Mesmo com o cessar-fogo em vigor, a paz segue frágil. No domingo, 19, Israel voltou a bombardear o território palestino em retaliação a um ataque do Hamas contra militares israelenses. O governo de Israel afirmou que aviões atingiram alvos no Sul de Gaza após ordem do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para uma “forte retaliação”. O Hamas negou ter realizado qualquer ofensiva dentro da região. 

“Depois desse incidente de domingo, parecia que a trégua ia acabar por completo, mas graças a Deus ela foi retomada”, contou Padre Romanelli, que interpreta que a guerra apenas começou a acabar: “Esperamos que este seja o início do fim, mesmo sabendo que isto não é de forma alguma sinônimo de paz”. 

O Cardeal Pizzaballa ponderou: “Tudo isso era previsível, porque a suspensão da guerra, ainda não sabemos se é definitiva, é um processo incerto. Tudo precisa ser reconstruído, organizado, e é natural que haja altos e baixos”. 

ESPERANÇA E RECONSTRUÇÃO 

Em mensagem divulgada no início de outubro, o Cardeal Pizzaballa afirmou que este é um tempo de “nova página” na história da região. “O caminho da paz é longo e requer gestos concretos de confiança. Precisamos reconstruir não apenas as casas, mas também o tecido humano e espiritual.” 

Padre Romanelli disse que uma delegação das Nações Unidas deve visitar Gaza nos próximos dias, um sinal positivo de envolvimento internacional. “É urgente que tragam o quanto antes as coisas necessárias para a vida das pessoas”, afirmou. 

Entre as prioridades está a educação das crianças. “Não é fácil organizar o início das aulas porque ainda não temos lugar. Apesar de a maioria dos professores já ter retornado, cada um vive seu próprio drama, muitos perderam familiares e tiveram suas casas destruídas.” 

Mesmo assim, pequenos sinais de normalidade começam a despontar. “Pela terceira vez, um grupo da Paróquia foi tomar banho de mar. Isso mostra que estão um pouco mais relaxados”, contou o Pároco. 

UM HOSPITAL PARA CURAR 

Em setembro, a Conferência Episcopal Italiana (CEI) anunciou que irá criar um hospital em Gaza, em parceria com o Patriarcado Latino e a Custódia da Terra Santa. A iniciativa busca garantir atendimento médico de emergência e apoio à população civil, configurando um gesto concreto de solidariedade da Igreja diante da crise humanitária. 

“Há um problema de saúde muito grave e queremos assumir essa responsabilidade junto com o Patriarcado: é um compromisso concreto, que mobilizará muitas energias”, afirmou Dom Giuseppe Baturi, Secretário-geral da CEI. Além da assistência médica, o projeto prevê suporte às famílias, aos padres e aos jovens da região, com ações voltadas às necessidades alimentares, de trabalho, moradia e educação. Para o Bispo, tais iniciativas constituem uma verdadeira “energia de paz”, capaz de formar consciências e abrir caminhos para o futuro. 

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