O testemunho inspirador de Milada Horáková

A juíza e política tcheca, foi condenada à morte pelo regime comunista em 1950. Antes de morrer, escreveu uma carta à sua filha, Jana, que só conseguiria lê-la anos depois; um conteúdo inspirador sobre quem viveu à luz da verdade.

Reprodução da Internet

Eram 6h de 27 de junho de 1950, quando Milada Horáková, juíza e política tcheca, foi enforcada em Praga, no pátio da prisão de Pankrác. Contra a sua injusta condenação à morte tinham apelado, inutilmente, personalidades como Winston Churchill, Albert Einstein e Eleanor Roosevelt, primeira-dama dos Estados Unidos. Ela, que tinha antes lutado contra o nazismo e escapado de outra condenação à morte, não pôde fazer nada contra o regime comunista que tinha tomado o poder. Acusada falsamente de espionagem e conspiração, depois de um breve e indigno processo, abandonou-se a seu destino. Terminava, assim, a vida de uma grande mulher, mãe e política.

Há um excelente filme, “Milada”, que conta a história de sua vida e pode ser facilmente encontrado na Netflix.

Entre tantas cartas escritas antes da morte, aquela endereçada à sua filha de 16 anos, Jana, é um testemunho de amor, lucidez e certeza de que a verdade sempre vence.

Jana, filha de Milada Horáková – Reprodução da internet

Minha  única  garotinha,  Jana,  Deus abençoou minha vida como mulher com você. Como seu pai escreveu em uma poesia quando estava em uma prisão alemã, Deus nos deu você, porque Ele nos amou. Além do mágico e extraordinário amor de seu pai, você foi o maior presente que recebi do destino. No entanto, a Providência planejou minha vida de tal forma que eu não pude dar a você tudo aquilo que minha mente e meu coração lhe haviam preparado. A razão não é que eu a amei pouco; eu a amei com a mesma pureza e fervor com que as outras mães amam seus filhos. Mas entendi que minha tarefa aqui no mundo era lhe fazer o bem, cuidando para que a vida fosse melhor e para que todas as crianças pudessem viver bem. E, para isso, muitas vezes, tivemos que nos separar por um longo tempo. Esta já é a segunda vez que o destino nos separa. Não fique assustada e triste porque eu não voltarei mais. Aprenda logo, minha filha, a olhar a vida como um assunto sério. A vida é dura, não mima ninguém, e cada vez que a golpeia, ela dá dez golpes. Acostume-se logo, mas não deixe que isso a desencoraje. Decida lutar. Tenha coragem e objetivos claros e você vencerá na vida”, escreveu Milada.

Muito ainda não está claro para sua mente jovem, e não tenho mais tempo para lhe explicar coisas que você ainda gostaria de me perguntar. Um dia, quando crescer, você se perguntará por que sua mãe, que a amou e para quem você foi o presente maior, conduziu a vida dela de forma tão estranha. Talvez, então, você encontre a solução certa para este problema, talvez uma melhor do que eu mesma poderia lhe dar hoje. Claro, você só será capaz de encontrar a solução correta e verdadeira sabendo muito, muito mesmo. Não apenas dos livros, mas das pessoas; aprenda com todos, mesmo com aqueles que parecem sem importância! Viaje pelo mundo com os olhos abertos e ouça não apenas suas próprias dores e interesses, mas, também, as dores, interesses e anseios dos outros. Nunca pense em nada como não sendo da sua conta. Não, tudo deve interessar a você, e você deve refletir sobre tudo, comparar,  compor fenômenos  individuais. O homem não vive sozinho no mundo; nisso há grande felicidade, mas também uma tremenda responsabilidade. Essa obrigação consiste, em primeiro lugar, em não ser e não agir de forma exclusiva, mas, antes, se fundir com as necessidades e os objetivos dos outros. Isso não significa ficar perdido na multidão, mas saber que se é parte de tudo, para trazer o melhor de cada um para a comunidade. Se você fizer isso, terá sucesso em contribuir para os objetivos comuns da sociedade humana”, continuou.

Por fim, escreve ainda à filha: “Esteja mais ciente do que eu fui de um princípio: abordar tudo na vida de maneira construtiva – cuidado com a negação desnecessária –, não estou dizendo  toda negação, porque acredito que se deve resistir ao mal. Mas, para ser uma pessoa verdadeiramente positiva em todas as circunstâncias, é preciso aprender  a distinguir o ouro verdadeiro da bijuteria. É difícil, porque a bijuteria, às vezes, brilha tão deslumbrantemente… Confesso, minha filha, que muitas vezes na minha vida fiquei deslumbrada com bijuteria. E, às vezes, até brilhava tão falsamente que se deixava cair ouro puro da mão e se corria atrás do ouro falso. Você sabe que organizar bem a sua escala de valores significa não só se conhecer bem, ser firme na análise do próprio caráter, mas, principalmente, conhecer os outros, conhecer o máximo possível do mundo, seu passado, presente, e desenvolvimento futuro. Bem, em suma, saber, entender. Não tapar os ouvidos antes de qualquer coisa e sem motivo – nem mesmo calar os pensamentos e opiniões de quem pisou em meus pés, ou mesmo me feriu profundamente. Examine, pense, critique, sim, principalmente critique a si mesma, não tenha vergonha de admitir uma verdade que você passou a perceber, mesmo que tenha proclamado o contrário há pouco; não se torne obstinada com suas opiniões, mas, quando você chegar a considerar algo certo, seja então tão determinada a lutar e morrer por isso. Como disse Wolker, a morte não é ruim. Apenas evite morrer gradativamente, que é o que acontece quando alguém repentinamente se encontra separado da vida real dos outros. Você tem que criar suas raízes onde o destino determinou que você vivesse. Você tem que encontrar seu próprio caminho. Procure por si mesma, não deixe que nada a afaste, nem mesmo a memória de sua mãe e de seu pai. Se você realmente os ama, não os magoará ao vê-los de forma crítica apenas não siga por uma estrada que é errada, desonesta, e que não se harmoniza com a vida. Muitas vezes, mudei de ideia, reorganizei muitos valores, mas o que ficou como um valor essencial, sem o qual não posso imaginar minha vida, é a liberdade de minha consciência. Gostaria que você, minha garotinha, pensasse se eu estava certa”.

O testemunho de Milada é como o do velho Eleazar que, diante das atrocidades cometidas pelos invasores, se recusa a qualquer tipo de cumplicidade (2Mc 6,23-28): “Eleazar, tomando uma nobre resolução (…) preferiu ser conduzido à morte. ‘Não é próprio da nossa idade – respondeu ele – usar de tal fingimento, para não acontecer que muitos jovens suspeitem de que Eleazar, aos 90 anos, tenha passado aos costumes estrangeiros. Eles mesmos, após o meu gesto hipócrita, e por um pouco de vida, se deixariam arrastar por causa de mim. (…) E mesmo se eu me livrasse agora dos castigos dos homens, não poderia escapar, nem vivo nem morto, das mãos do Todo-poderoso. Sendo assim, se eu morrer agora, corajosamente, (…) terei deixado aos jovens um nobre exemplo de zelo generoso, segundo o qual é preciso dar a vida pelas santas e veneráveis leis.’ Ditas estas palavras, ele dirigiu-se ao suplício”.

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