A desnutrição infantil ainda é uma preocupação no País, mas avançam os casos de obesidade. Assunto é destaque na série ‘Infância Roubada’, publicada mensalmente no O SÃO PAULO
Metade das crianças com até 5 anos de idade no Brasil vive em lares com algum tipo de insegurança alimentar, ou seja, suas famílias encontram dificuldades leves, moderadas ou graves para ter acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficientes. Na faixa etária de 5 a 17 anos, esse percentual é de 50,7%, conforme dados apresentados em setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O levantamento não leva em conta as famílias que estão em situação de rua; assim, a má nutrição infantil no País pode ser ainda mais grave, apesar dos avanços verificados nas últimas décadas, incluindo a oferta de refeições aos estudantes nas escolas públicas, o acompanhamento nutricional desde o ventre materno, os programas de transferência de renda e as medidas protetivas legais, como a ação dos Conselhos Tutelares e do Ministério Público em favor das crianças que estão desnutridas em razão de descuido de seus pais ou responsáveis.
Desnutrição e sobrepeso
A má nutrição infantil não deve ser entendida apenas como desnutrição, uma vez que, conforme dados de 2019 do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), o sobrepeso infantil é a realidade de uma em cada três crianças entre 5 e 9 anos no País.
“Podemos falar em uma coexistência. Aquela desnutrição aguda, da criança magrinha, com as costelas aparecendo, que resultava em uma alta taxa de mortalidade, teve queda nos últimos anos. Permanecem, porém, as formas de subnutrição crônica – que é aquela típica situação em que a criança, de tão baixinha que é, aparenta ter 2 anos, mas já está com 6 anos. Essa desnutrição crônica não é aferida, é uma doença invisível. E há o crescimento da obesidade, que ‘grita’ aos olhos; no entanto, nem sempre essa criança baixinha, gordinha, é devidamente avaliada nas consultas médicas e na escola, para que se faça algo”, comentou ao O SÃO PAULO Maria Paula Albuquerque, gerente-geral clínica do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (CREN), que atua na educação nutricional e tratamento de subnutrição e obesidade.
De acordo com Caroline Dalabona, mestra em saúde pública pela USP e nutricionista da coordenação nacional da Pastoral da Criança, a desnutrição e o sobrepeso infantil são problemas igualmente preocupantes. “Temos um ambiente que facilita o acúmulo de peso e, com isso, atualmente há mais crianças com excesso de peso (sobrepeso + obesidade) do que com desnutrição, apesar de que, com a pandemia, muitos pesquisadores estimam o aumento da desnutrição devido à fome. Dados do Sisvan de 2019 mostram quase 15% de crianças até 5 anos com excesso de peso no Brasil, segundo o Índice de Massa Corporal (IMC) para a idade, enquanto que a desnutrição não passa de 7%.”
Responsabilidades
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar alimentação às crianças, adolescentes e jovens, conforme consta no Artigo 227 da Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas, para Maria Paula, os três atores têm falhado nessa responsabilidade.
“Hoje há uma governança inadequada e nem sempre com foco no bem comum nessa questão. A indústria de alimentos é muitas vezes gananciosa, mas não é taxada nas externalidades que causa à saúde das crianças, e precisaria, urgentemente, rever seus processos. Também a sociedade civil deve sair da apatia e tomar sua responsabilidade. Os pais precisam ser mais bem informados e entender que têm uma responsabilidade de escolha”, observa a gerente-geral clínica do CREN.
Para Caroline Dalabona, o problema de sobrepeso infantil decorre não só do consumo inadequado de alimentos – em especial os ultraprocessados, mais baratos e ricos em açúcar, gorduras e outras substâncias –, mas também da falta das condições para que as crianças gastem energia enquanto brincam. A nutricionista alerta, ainda, que se tem verificado a redução no número de visitas médicas domiciliares em todo o Brasil, o que redunda em mais crianças desnutridas: “Tem-se demorado demais para descobrir essas famílias e fortalecê-las”.
CREN: educação e tratamento de distúrbios nutricionais Ação pastoral em favor do desenvolvimento integral da criança |
Mil dias preciosos
As duas especialistas ouvidas pela reportagem ressaltam que os primeiros mil dias de vida de uma criança – da concepção até os 2 anos de idade – são fundamentais para o restante de seu desenvolvimento, de modo que os cuidados com a alimentação devem ocorrer já na gestação.
“Se a gestante passa fome ou come menos do que deveria – às vezes por não querer engordar muito –, o bebê sofre desnutrição intrauterina e nasce com baixo peso (menos de 2,5kg). Essa desnutrição provoca mudanças metabólicas no organismo do bebê, se tornando o que chamamos de ‘organismo poupador’. Ele se acostuma a viver com pouco alimento e quando, já na infância, for exposto a uma maior quantidade de alimentos, tende a armazená-la. E aí surge o sobrepeso e a obesidade”, detalhou Caroline.
Por força da Lei 13.257/2016, houve um acréscimo no Artigo 8º do ECA, mediante o qual se assegura que no Sistema Único de Saúde (SUS), “a gestante deverá receber orientação sobre aleitamento materno, alimentação complementar saudável e crescimento e desenvolvimento infantil, bem como sobre formas de favorecer a criação de vínculos afetivos e de estimular o desenvolvimento integral da criança” (§ 7º).
Consequências para toda a vida
A nutricionista da Pastoral da Criança exemplifica outras consequências que a má nutrição do feto gera para o resto da vida de uma pessoa: “Se a criança sofre desnutrição no útero materno, toda a formação dela é comprometida. Devido à falta de nutrientes, o organismo prioriza o cérebro, e os outros órgãos ficam com o desenvolvimento comprometido, fazendo com que se tornem menores e isso, futuramente, pode predispor a doenças crônicas. Por exemplo: o rim pode ficar menor, com menos células para filtrar o sangue, e na vida adulta pode sofrer sobrecarga e levar a mais risco de hipertensão arterial e até mesmo de insuficiência renal; outro exemplo é o coração, que fica menor, com menos células, e isso afeta a capacidade de regeneração do órgão na vida adulta”.
Caroline afirma ser o ideal que as intervenções nutricionais em prol da saúde da criança aconteçam nos primeiros dois anos de vida, para reverter quadros como o crescimento abaixo do esperado e atrasos, entre eles o cognitivo, motor, de linguagem e cerebral.
Embora na adolescência o metabolismo da pessoa já esteja programado, Maria Paula lembra que intervenções podem ser feitas e são indispensáveis. “As mesmas coisas que se podem fazer para a primeira infância servem para os adolescentes, em especial reduzir a oferta de alimentos ultraprocessados, que são de baixo custo, palatáveis e de fácil acesso para alguém que já é dono de suas escolhas”, observa. “O adolescente obeso é vítima de hostilidade, bullying, tem maior abandono e evasão escolar e há maior taxa de depressão e suicídio. Além disso, ele vai ser um adulto obeso e, muito provavelmente, vai morrer alguns anos mais cedo”, conclui.
(Colaborou: Jenniffer Silva)
Boa reportagem.
Mas caberia adicionar uma informação.
Os dados divulgados pelo IBGE foram coletados entre 2017 e 2018.
Também dizer que a simples preocupação com alimentação futura já configura insegurança alimentar leve e entra dentro desse número.