Os riscos da transformação da Igreja de Santa Sofia em mesquita

Patrimônio histórico, cultural, arquitetônico e religioso do templo pode ser perdido

A decisão do presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, de transformar a antiga Igreja de Santa Sofia em mesquita, no dia 10, ocasionou uma série de críticas de líderes religiosos e políticos de diversos países, além de colocar em risco o patrimônio histórico, cultural e religioso do templo e afrontar a fé de bilhões de cristãos.

O Papa Francisco afirmou “estar muito triste” com a decisão. O Patriarca caldeu Cardeal Louis Raphael Sako criticou duramente o presidente do país, afirmando que é “muito grave” ele não ter “considerado o respeito dos sentimentos de 2 bilhões de cristãos no mundo, esquecendo-se do que eles fizeram pelos muçulmanos. Conceder aquela que era uma igreja à exclusiva oração islâmica é um ato grave”.

No mundo ortodoxo, as críticas não foram menos expressivas. O primeiro que se manifestou foi o Patriarca de Moscou, Cirilo, afirmando que a Igreja de Santa Sofia tem o mesmo valor simbólico aos ortodoxos que a Basílica de São Pedro aos católicos: “Este templo foi construído no século VI, é dedicado a Cristo Salvador e, para nós, continua sendo um templo dedicado ao Salvador”. Outros patriarcados ortodoxos, como o georgiano, o romeno e o grego, também manifestaram sua insatisfação com a decisão.

No campo político, houve críticas da União Europeia, dos Estados Unidos e, mesmo, da aliada Rússia.

Erigida no século VI, Santa Sofia testemunhou concílios, o Cisma do Oriente, as Cruzadas, foi o centro do Cristianismo ortodoxo, porém, por um breve período, foi transformada em basílica católica. Depois da queda de Constantinopla, em 1453, tornou-se mesquita. Em 1935, por fim, tornou-se museu. Sua rica história e arquitetura fazem dela um centro de disputas constantes que, muitas vezes, infelizmente, colocam em risco o seu patrimônio cultural e de fé.

A Igreja de Santa Sofia

A história de Santa Sofia associa-se intimamente ao processo de declínio do Império Romano do Ocidente, que teve fim com a queda de Roma aos bárbaros em 476 d.C., e ao surgimento de um outro império, herdeiro direto e continuador da Roma decaída: o Império Bizantino.

Constantino, que mudou a capital do Império Romano para Bizâncio – futura Constantinopla e atual Istambul –, procurou criar na nova capital uma nova Roma, contudo assentada em bases cristãs.

Como primeiro imperador a professar o Cristianismo, Constantino trouxe à nova sede do Império relíquias importantíssimas para a fé cristã. Muitas delas descobertas por sua mãe, Santa Helena, depois de uma viagem a Jerusalém, e que viriam a ser postas em Santa Sofia. Constantino construiu diversas igrejas, algumas até hoje de pé em Istambul, como a Igreja de Santa Irene e a dos Santos Apóstolos. O estilo dessas igrejas era ainda da basílica romana, com longos corredores.

Constantino também reservou o local sobre o qual seria construída a Igreja de Santa Sofia, dedicada à Sabedoria Divina. Após sua construção, no entanto, um incêndio a consumiu. Depois de ter sido edificada uma segunda vez, um novo incêndio a colocou abaixo. Justiniano, então, no ano de 532 d.C., decidiu construir a que seria a maior igreja do mundo até o século XVI, para demonstrar a riqueza e a fé do Império Bizantino. Justiniano não poupou esforços e dinheiro para concluir o templo, que ficou pronto em apenas cinco anos e serviu de Catedral de Constantinopla até a queda da cidade pela conquista muçulmana, em 1453.

A grandiosidade do templo fez um historiador da época afirmar que “qualquer um que entre na igreja para rezar entende de imediato que não é pelo poder ou capacidade humana, mas por influência de Deus que essa obra foi tão bem-feita”.

O templo, em si, é uma criação arquitetônica única, pois funde ideais do Império Romano com os do Cristianismo bizantino e, pela primeira vez, cria uma arquitetura de origem cristã. Santa Sofia marcou o fim da era das basílicas romanas e a ascensão das famosas cúpulas ou domos. Sua grande cúpula é uma inovação arquitetônica: ao contrário da cúpula do Panteão em Roma, assentada sobre um edifício redondo, a cúpula de Santa Sofia assenta-se sobre um edifício quadrado e é suportada por duas meias cúpulas e pelos chamados pendículos, que depois se tornaram comuns na arquitetura de igrejas.

A Igreja de Santa Sofia também é famosa por seus ricos mosaicos. Um deles representa a Virgem com o Menino Jesus, com Justiniano ao lado direito, carregando uma maquete da Igreja, e Constantino ao lado esquerdo, com uma maquete da cidade de Constantinopla. Há, também, inúmeros ícones de Cristo Pantocrator.

Uma das preocupações com a transformação de Santa Sofia em mesquita é que esses mosaicos sejam cobertos e destruídos. Quando, em 1453, a Igreja foi transformada em mesquita pela primeira vez, todos os ícones foram cobertos com gesso, uma vez que a religião islâmica proíbe o uso de qualquer imagem. Os ícones que podem ser vistos hoje só foram restaurados nos anos 1940 e, ainda sim, são uma pequena porção daqueles que antes existiam.

A importância de Santa Sofia não se resume à sua arquitetura. Diversos fatos históricos importantíssimos ao Cristianismo tiveram lugar entre suas paredes. Três concílios ecumênicos, aceitos tanto por católicos quanto por ortodoxos, lá ocorreram. O grande Cisma de Oriente, quando grande parte da Igreja Oriental se separou de Roma, se formalizou em Santa Sofia, quando o Patriarca bizantino e os legados papais se excomungaram mutuamente.

Dessa forma, a transformação de Santa Sofia em mesquita pode colocar em risco um patrimônio que foi construído anos antes da existência do Islamismo e que serviu, por aproximadamente mil anos, como centro do Cristianismo oriental. Reduzir o templo a uma mesquita pode criar marcas indeléveis nas relações, sempre tão complexas, entre cristãos e muçulmanos.

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