‘Vamos sonhar juntos’: o convite do Papa à humanidade

Em novo livro, Francisco reflete sobre como transformar a crise atual em oportunidade de buscar a união e ‘um futuro melhor’

por DANIEL GOMES e FILIPE DOMINGUES

Crédito: Divulgação

O momento atual é de grande provação. Na visão do Papa Francisco, porém, é também uma oportunidade para cada um se deixar tocar pelo sofrimento, se dispor ao serviço do outro e trabalhar por um bem maior, o bem comum. “Este é o momento para sonhar grande, para repensar nossas prioridades – o que valorizamos, o que queremos, o que buscamos –, nos comprometermos com as pequenas coisas e para transformar em realidade o que sonhamos”, diz ele no livro “Vamos sonhar juntos: O caminho para um futuro melhor”, lançado no dia 1o pela editora Intrínseca.

Nessa longa quarentena, observa o Pontífice, cada um pode viver uma “Covid-pessoal”, que é um momento de isolamento e dor, mas também uma pausa para analisar aquilo que precisa mudar em sua vida. “Se permitimos que o sofrimento nos mude, saímos melhores. Se nos fechamos, no entanto, ficamos piores.”

Além da crise visível da COVID-19, há outras mazelas que se referem a todos nós: a fome, a violência e a mudança climática. No ano em que a humanidade foi sacudida pela pandemia, o Papa apresenta este livro – a partir de uma entrevista concedida ao jornalista e escritor britânico Austen Ivereigh – como um convite para observar as realidades, escolher prioridades e agir para a edificação de um mundo melhor.

Descentrar e transcender

Em duas palavras, o Papa responde à pergunta “E agora, o que devo fazer?” Elas são “descentrar e transcender”, diz.

A primeira, afirma Francisco, quer dizer fazer uma espécie de “peregrinação” espiritual, isto é, deixar nossas convicções pessoais de lado por um momento, abandonando velhas “formas de pensar e agir”, para depois voltar à própria vida e observá-la com olhos diferentes. Assim como um peregrino parte em uma jornada e retorna à casa renovado, é possível “descentrar”, deixar de ser o próprio centro.

Já “transcender”, comenta o Papa, é buscar a energia além da realidade material. “Leia o Evangelho, se for cristão. Ou apenas crie um espaço dentro de si mesmo para escutar. Se abra… se descentre… transcenda.” E, depois, é possível agir no mundo, mostrando-se próximo de pessoas e movimentos já existentes, que buscam renová-lo.

Ver, escolher, agir

O livro é dividido em três partes – tempo de ver, tempo de escolher e tempo de agir –, nas quais o Papa faz um diagnóstico sobre os problemas atuais, discerne e interpreta o que há de bom e mau, propondo linhas de ação. O primeiro passo, diz ele, é olhar para as realidades, na busca de uma resposta de esperança.

Uma das atitudes é ir às periferias, não apenas para sentir as carências do povo, mas para descobrir “as alianças que lá estão sendo feitas, para apoiá-las, estimulá-las”. Outra é dignificar aqueles que durante a pandemia escolheram colocar a vida em favor do próximo, como os profissionais da área da Saúde, sacerdotes e religiosos.

O Papa alerta que o narcisismo, o desânimo e o pessimismo impedem “o crescimento, a conexão com a realidade e, especialmente, a entrada do Espírito Santo”; critica a cultura do descarte, bem como a indiferença; e estimula a busca de caminhos para que os hoje excluídos se tornem protagonistas das transformações sociais.

“Precisamos voltar a sentir que necessitamos uns dos outros, que somos responsáveis pelos outros, inclusive pelos que ainda não nasceram e pelos que ainda não são considerados cidadãos”, diz ele.

Francisco reflete sobre o modo como as mídias foram usadas para bons ou maus propósitos durante a pandemia, enaltece as ações de uma Igreja que se reinventou – “foi um testemunho extraordinário” – e lembra que a maioria dos governos “fizeram grandes esforços para priorizar o bem-estar do seu povo, atuando com determinação para proteger a saúde e salvar vidas”.

Ele indica que a humanidade, ao não aceitar os limites impostos pela natureza, passou a ser subordinada à tecnologia e, fazendo alusão à encíclica Laudato si’ (2015), aponta que“o futuro que somos chamados a construir precisa começar com uma ecologia integral, que leve a sério a deterioração cultural e ética que caminha de mãos dadas com a nossa crise ecológica”.

Reorganizar a vida

O Papa Francisco indica pistas para se reorganizar os modos de vida atual, tais como a disposição em servir e ser solidário, ter capacidade de reflexão e silêncio, orar para ouvir o chamado do Espírito e cultivar o diálogo.

O momento é de escolher a fraternidade ao individualismo, trabalhando em união e “convidando todos a contribuir, a partir de suas diferenças, como uma comunidade de irmãos preocupados uns com os outros”.

As escolhas também devem ser feitas à luz dos princípios da Doutrina Social da Igreja: a opção preferencial pelos pobres, a busca do bem comum, a destinação universal dos bens, a solidariedade e a subsidiariedade. Segundo o Pontífice, é preciso resistir aos fundamentalismos e buscar o discernimento, que “nos permite mudar de contextos e situações específicas enquanto seguimos em busca da verdade”.

Abrir-se para o outro

Essa postura se contrapõe ao que Francisco chama de consciência isolada, pela qual os grupos tomam suas convicções como a verdade e passam a criticar os demais, um mal do qual, segundo o Pontífice, a Igreja não está imune.

“A indignação da consciência isolada começa no irrealismo, passa por fantasias maniqueístas que dividem o mundo em bons e maus (com eles [os de consciência isolada], naturalmente, sempre ao lado dos bons) e termina em diversos tipos de violência verbal, física etc.”, afirma.

Francisco indica, ainda, que é preciso enfrentar a tentação do reducionismo simplista e o relativismo, e ter a coragem de abrir-se aos conflitos, a fim de que a partir das contraposições surjam soluções conjuntas para o benefício de todos. Nesta perspectiva, o Papa afirma que a Igreja oferece a experiência da sinodalidade.

“A abordagem sinodal é algo de que nosso mundo tem muita necessidade hoje. Em vez de buscar o confronto, declarando guerra, com cada um dos lados esperando derrotar o outro, precisamos de processos que permitam expressar as diferenças, escutá-las e fazê-las amadurecer, para assim podermos caminhar juntos, sem necessidade de aniquilar ninguém”, afirma, recordando as experiências dos sínodos da Família (2014 e 2015) e da Amazônia (2019). Ele ressalta que o caminho sinodal é caracterizado pela “atenção àquilo que o Espírito Santo tem a nos dizer”.

Ações concretas

Além de “descentrar e transcender”, que são ações individuais que cada pessoa pode buscar, o Papa reflete sobre questões concretas coletivas, como a necessidade de se prover “terra, teto e trabalho” a todas as pessoas.

O fio condutor desse raciocínio é a ideia de se “pertencer a um povo”, algo que, em sua visão, foi apropriado por linhas “populistas”, que buscam se servir do povo e não “ao povo”. Francisco defende que se recupere o espírito de pertencimento a um grupo maior, o povo – algo que os cristãos compreendem ao falar do “povo de Deus”, um coletivo que, embora não homogêneo, tem uma raiz, sua história compartilhada.

Em suas palavras, “nos disseram que a sociedade é apenas uma amálgama de indivíduos, cada um buscando os próprios interesses; que a unidade das pessoas é uma mera fábula; que somos impotentes frente ao poder do mercado e do Estado; e que o objetivo da vida é o lucro e o poder”.

Em vez disso, a pandemia nos mostra que é preciso “recuperar nossa memória”. Isso se faz “indo ao encontro dos outros, olhando os olhos, os rostos, as mãos e as necessidades daqueles que nos rodeiam e assim também descobrir nosso rosto, nossas mãos cheias de possibilidades”.

O livro “Vamos sonhar juntos: O caminho para um futuro melhor” esta à venda no site da editora Intrínseca.

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