Até quando o Senhor Jesus virá em sua glória, e, destruída a morte, ser-lhe-ão submetidas todas as coisas, alguns de seus discípulos são peregrinos na terra; outros, que passaram desta vida, estão se purificando; outros, enfim, gozam da glória, contemplando a Deus. Todos, porém, comungamos na mesma caridade de Deus. Portanto, a união entre aqueles que estão a caminho e os irmãos falecidos de maneira alguma se interrompe, antes vê-se fortalecida pela comunhão dos bens espirituais (cf. LG 49).
A Igreja, desde os primeiros tempos, vem cultivando com grande piedade a memória dos defuntos e oferecendo por eles seus sufrágios (ibidem, 50). Nos ritos fúnebres, a Igreja celebra com fé o mistério pascal, na certeza de que todos que se tornaram pelo Batismo membros do Cristo crucificado e ressuscitado, através da morte, passam com ele à vida sem fim (cf. Rito das Exéquias, 1). A celebração da Comemoração de todos os fiéis defuntos teve início, também em Roma, no séc. XIV.
O destino final do homem não é voltar a ser pó, mas chegar à visão eterna de Deus. Para atingi-la é preciso passar pelas trevas da morte. Por isso, celebramos o Dia de Finados. Neste dia, entramos em contato com eles, através da oração, para estarmos unidos a eles no céu, na glória de Deus.
A Celebração dos fiéis defuntos é uma solenidade que tem um valor profundamente teológico, porque chama a nossa atenção para todo o mistério da existência humana, desde suas origens até o seu fim e para além também. A novidade introduzida pela nossa fé é a esperança: nós cristãos acreditamos em um Deus. que não é apenas Criador, mas também Juiz.
A morte é apenas uma porta…
Logo, Deus é também é um Juiz! O seu juízo vai para além do tempo e do espaço, em uma vida após a morte e na vida eterna, na qual o Reino de Deus se realiza plenamente. O julgamento do Senhor será duplo: além de responder individualmente às nossas ações, no final dos tempos, seremos chamados a responder-lhes também como humanidade.
Se morrermos em Cristo, porque vivemos a nossa vida em comunhão com Ele, seremos admitidos na Comunhão dos Santos.
A celebração de hoje se insere nesta perspectiva: a Igreja não esquece seus irmãos falecidos, mas reza por eles, oferece sufrágios, celebra Missas e oferece esmolas, para que também as almas, que ainda precisam de purificação, após a morte, possam alcançar a visão de Deus.
Cristo venceu a morte!
A morte é um acontecimento inevitável. Cada um de nós pode entender isso pela própria experiência pessoal. Segundo a visão cristã, porém, não é considerada um fato natural. Pelo contrário, é o oposto da vontade de Deus! Deus, o Senhor da vida, nos dá a vida em abundância e a morte é uma mera consequência do nosso pecado. Entretanto, em Cristo, Deus toma sobre si os nossos pecados e suas consequências. Desta forma, a morte se torna uma passagem, uma porta.
Graças à vitória de Cristo sobre a morte, podemos superar o medo que temos dela e a dor que sentimos quando atinge alguém que está próximo de nós.
Enfim, para o cristão, não há distinção entre vivos e mortos, porque nem os mortos são “mortos”, mas “defuntos”, ou seja, “privados das funções terrenas”, à espera de serem transformados pela Ressurreição.
História e origem desta celebração
A “pietas” humana para com os defuntos remonta aos primórdios da humanidade. Mas, como vimos, com o advento do cristianismo a perspectiva muda radicalmente.
Os primeiros cristãos, como podemos facilmente observar nas catacumbas, esculpiam a figura de Lázaro nos túmulos, como anseio de que seus entes queridos pudessem também voltar à vida, por intermédio de Cristo.
No entanto, somente no século IX começou a celebração litúrgica de um falecido, como herança do uso monacal, já em vigor no século VII, de empregar, dentro dos mosteiros, um dia inteiro de oração por um falecido.
Este costume, porém, já existia no rito bizantino, que celebrava os mortos no sábado anterior à Sexagésima, um período entre o fim de janeiro e o mês de fevereiro.
Mais tarde, no ano 809, o Bispo de Trier, Dom Amalário Fortunato de Metz, inseriu a memória litúrgica dos falecidos – que aspiram ao céu – no dia seguinte ao dedicado a Todos os Santos, que já estavam no céu.
Enfim, em 998, por ordem do abade de Cluny, Odilone de Mercoeur, a solenidade de Finados foi marcada para o dia 2 de novembro, precedida por um período de preparação de nove dias, conhecido como Novena dos Defuntos, que começava no dia 24 de outubro.
No século II, há indícios de que os cristãos rezavam e celebravam a Eucaristia pelos seus defuntos. No início, eram recordados no terceiro dia do enterro e, depois, no aniversário de morte. A seguir, no 7º e 30º dia. Tudo começou, porém, no ano 998, quando o Abade Odilo, de Cluny (994-1048), exigiu que o então chamado “Dia de todas as almas”, hoje Dia de Finados, fosse celebrado em 2 de novembro, em todos os mosteiros sob a sua jurisdição. Em 1915, Bento XV concedeu a faculdade a todos os sacerdotes de celebrar várias Missas neste dia, desde que a intenção fosse feita apenas em uma Missa. Hoje, a liturgia propõe várias Missas, nesta data, a fim de ressaltar o mistério pascal, a vitória de Jesus sobre o pecado e a morte.
Texto (extraído da primeira Missa):
«Todo aquele que o Pai me dá virá a mim, e o que vem a mim não o lançarei fora. Pois desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. Ora, esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não deixe perecer nenhum daqueles que me deu, mas que os ressuscite no último dia. Esta é a vontade de meu Pai: que todo aquele que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia» (Jo 6,37-40).
A vontade de Deus
A mensagem revolucionária é que “todo aquele que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei…”. Sabemos, por experiência, que o corpo se decompõe: mas o corpo não representa todo o homem! O homem, como pessoa, é parceiro do diálogo com Deus, que não o deixa cair, não o esquece, porque Deus é fiel às suas promessas. Deus escreveu cada um de nós na palma da sua mão e não se esquecido de ninguém, porque Ele é o Pai. Eis o ponto central da mensagem que Jesus nos deixou. Por esta verdade, Jesus fez-se homem, morreu na cruz e ressuscitou, para fazer-nos partícipes da alegria da ressurreição: “Dai-lhes, Senhor, e a todos os que descansam em Cristo, a beatitude, a luz e a paz”, rezamos no cânone I da Missa, no momento de recordar os fiéis defuntos.
Deixar-se surpreender
É claro que sobreviveremos, disse Jesus! Porém, como isso acontecerá não sabemos, podemos apenas intuir, mediante a escuta da Palavra evangélica. No entanto, permanece a esperança de poder-nos surpreender com a bondade de Deus, com a sua misericórdia. Temos os nossos parâmetros, para medir os acontecimentos da vida, mas devemos deixar a Deus os seus parâmetros, que não são os nossos: será precisamente este que nos surpreenderá, quando cruzarmos a Porta do Paraíso.
Um passo a mais
Morrer não é desaparecer, mas viver de modo novo. É saber que, os que nos precederam, deram um “passo a mais” no caminho da vida; atingiram o cume, enquanto nós ainda estamos percorrendo as sendas da vida; ultrapassaram a curva da vida, enquanto ainda estamos ao longo do retilíneo. Por isso, a morte não é o fim de tudo, mas o início de uma vida nova, para a qual nos encaminhamos e nos preparamos desde o início.
Logo, a Comemoração dos Fiéis Defuntos não é apenas uma “recordação” dos que não estão mais presentes entre nós, fisicamente, mas uma ponte, que nos aguarda no fim da vida, que nos conduzirá à outra margem, à qual todos nós somos destinados; é um meio para não nos deixarmos afogar por tantas mágoas, esquecendo que tudo passa, mas Deus permanece.
Irmã morte
São Francisco de Assis, após ter-se reconciliado com Deus, consigo mesmo e com a criação, no final da sua vida conseguiu reconciliar-se até com a morte, tanto que passou a chamá-la “irmã”, sinal que, também para ele, se tratava de um mistério a ser compreendido e aceito. Ao contrário da sociedade de hoje, que tenta, com todos os meios, ocultar a realidade da morte, iludindo-se ser eterna, São Francisco nos ensina a encará-la, compreendê-la, a considerá-la uma “irmã”, uma parte de nós. No fundo, é um acontecimento real e existente: é um ato de honestidade intelectual, antes de ser espiritual. O medo, diante da “irmã morte”, certamente, é ditado pela ignorância, por não saber o que está além da “porta”. Por isso, suscita certo desconforto. Depois, é inútil esconder que tememos o “peso” das nossas ações, pois, no final das contas, todos acreditam, em seus corações e, no fim da vida, nos perguntaremos como vivemos. Esta experiência leva-nos a rezar pelos que nos precederam, quase querendo ajudá-los e protegê-los, ao invés de pedir sua ajuda e proteção.
Uma coisa é certa: vemos a morte à luz da ressurreição de Jesus. Eis a nossa força e serenidade. Ele nos abriu o Caminho que conduz, com A Verdade, à Vida. O próprio Jesus recordou-nos que somos feitos para a eternidade: mil anos para nós são como um sopro diante de Deus; este tempo tão curto e passageiro da vida, não tem sentido se não for projetado para uma experiência mais verdadeira, como o próprio Jesus disse: “Quem vê o Filho e nele crê terá a vida eterna”.
Enfim, uma última coisa: Jesus fez-se o homem para nos ajudar a viver “por Deus”; ele morreu, foi sepultado e desceu ao ínfero para que ninguém se sentisse excluído da sua ação salvadora. Para que eu não tenha medo e não me sinta só e abandonado, à mercê dos meus temores, Jesus quis “viver” todos os lugares, até nos mais baixos, para me fazer “companhia” naquele momento. Não há “espaço”, na vida e na morte, que ele não tenha visitado. Isso me dá a certeza de que ele vai me receber, de braços abertos, em qualquer situação em que me “encontrar”: tanto hoje, no pecado, quanto amanhã, na morte, Ele sempre estará ao meu lado. Porque Ele venceu o pecado e a morte e me preparou um lugar na Casa do Pai. Isto me é suficiente para percorrer o caminho da vida, com confiança e esperança: “Mesmo se eu tivesse que caminhar em um vale escuro” (Sl 23), Ele estará sempre comigo!
Fonte: Missal Romano e Vatican News