O congolês Tifani Ndangi nem sabia que estava saindo da República Democrática do Congo (RDC) rumo ao Brasil. Um dia, seu pai, Vicki Lube Basakinina, entrou em seu quarto e disse: “Ajude seus irmãos a fazerem as malas!”.
Era uma noite de sexta-feira de setembro de 2014. Ele estava em seu quarto estudando para uma prova. “Fazia quase um ano que não via meu pai. Fiquei em choque, sem entender. Eu não me esqueço dessa frase até hoje”, rememora Tifani, com a voz pausada e em português com um leve sotaque francês.
Tifani tinha 20 anos à época. Ele é o mais velho de quatro irmãos. Todos fizeram as malas e começaram a viagem: da República Democrática do Congo para o Congo e, de lá, para Marrocos, de onde partiram para São Paulo.
‘MEU PAI SABIA DEMAIS’
O jovem e sua família moravam em uma casa confortável em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo. Seus pais tinham uma empresa de vestuário com cerca de 20 empregados e ele, enquanto era estudante, chegou a fazer alguns trabalhos como modelo.
Os problemas para a família começaram quando o pai, um policial que trabalhava no governo de então, decidiu deixar o posto por um certo “descontentamento”.
“Meu pai fazia parte de um grupo político que era do governo e, depois de um tempo, decidiu mudar para a oposição. Foi então que começou a cair o castelo dele. As pessoas que trabalhavam com ele diziam que meu pai sabia demais”, lembra.
A família começou a ser perseguida. Milícias armadas ligadas ao grupo político governista entravam na casa deles, promovendo todo tipo de violência. “Chegaram a ameaçar estuprar a minha mãe na nossa frente!”, recorda, indignado.
Tifani diz que o pai, certa vez, foi parar no hospital, todo machucado. Até hoje, ele não sabe ao certo o que aconteceu. O “incidente” deixou o pai com lapsos de memória. Tifani também não sabe o porquê de o Brasil ter sido escolhido como destino da família.
A CHEGADA
A família – pai, mãe, Tifani e mais três irmãos, sendo o menor uma menina – desembarcaram no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, em algum dia entre 9 e 11 de setembro de 2014.
“Nós tínhamos o primo de alguém que nos esperaria no aeroporto, mas ele não apareceu”, recorda.
Sem conhecerem ninguém, sem saberem nada de português, eles ficaram cerca de duas horas andando desorientados pelo aeroporto, até se aproximarem de um homem que parecia ser congolês. “Foi esse anjo que nos ajudou. Ele estava no Brasil havia dois anos e nos levou até um hotel no Brás [região central de São Paulo]. Estávamos cheios de medo, traumatizados, não conseguíamos interagir.”
Antes de virem a São Paulo, o pai havia vendido uma casa da família. Com os dólares, embarcaram para o Brasil. Por sorte, conta ele, todo o dinheiro trazido na mala não passou pela fiscalização da Polícia Federal no aeroporto nem foi roubado.
Uma semana depois, a família começou a procurar abrigo e foi instalada em um no centro de São Paulo, onde também eram acolhidas pessoas em situação de rua. A estada era permitida apenas para o pernoite. A experiência nas ruas deixou a família ainda mais assustada. Também lhes causava estranheza o fato de que todos tomavam banho juntos no abrigo. “Na minha cultura não se toma banho com o pai. Não se pode ver o corpo do pai, é como um sinal de azar, de que a vida não vai andar para frente.”
O PRIMEIRO CHORO E UMA NOVA ESPERANÇA
Um dia, a família estava sob um viaduto, em meio a pessoas se drogando. “Algumas pessoas em situação de rua começaram a ameaçar a minha família. Não entendemos e não ligamos. Mas meu irmão mais novo, então com 14 anos, começou a chorar, questionando o meu pai sobre o porquê de ele nos ter trazido para o Brasil. Meu pai começou a chorar também. Foi a primeira vez que vi meu pai chorando”, lembra Tifani.
A família, então, se rebelou para forçar a saída do abrigo e foi levada para outro lugar, no qual meninos e meninas ficavam em quartos separados.
“Foi melhor nesse abrigo. Até digo que 70% da minha integração no Brasil aconteceu lá. Pudemos organizar a vida, começamos a sair. Só havia imigrantes e refugiados. Tinha uma educadora que nos ajudava. Ela era francesa, se não me engano. Por isso, eu acho que esses abrigos deviam contratar imigrantes para ajudar na integração”, opina.
No novo abrigo, ele começou a fazer aulas de português em um curso oferecido pela Caritas Arquidiocesana de São Paulo, que já tinha auxiliado a família anteriormente para a obtenção de documentação no País.
A família permaneceu por nove meses no abrigo até alugar uma casa, no bairro de São Mateus, na zona Leste de São Paulo.
‘POR QUE ISSO ACONTECEU COMIGO?’
Tifani disse que entender-se como um refugiado é um processo demorado: “Há uma série de perguntas: ‘Por que isso aconteceu comigo?’; ‘Será que isso vai continuar assim?’; ‘Será que vou poder voltar a viver a minha vida antiga?’ Foi um processo difícil”.
Para se proteger dentro da nova vida, ele diz que “entrou na personagem de uma pessoa refugiada para deixar de pensar no passado, porque é difícil esquecer”.
“A personagem é uma estratégia de sobrevivência, me deu força para agarrar a vida. Nos seis primeiros meses aqui no Brasil, eu continuava achando que minha vida era a mesma, não queria saber de trabalhar, só de estudar”, diz.
A “chave virou” quando soube que sete pessoas da família de seu pai foram mortas na República Democrática do Congo devido às conexões políticas do pai. “Isso ‘quebrou as nossas pernas’. Vimos que não dava mesmo para voltarmos. A Caritas acompanhou esse processo. Tivemos apoio psicológico”, conta.
PILOTO
Em 2020, Tifani conseguiu uma bolsa para fazer um sonhado curso de piloto privado de avião e helicóptero, concluído em 2021. O sonho dele é continuar os estudos, mas ainda lhe faltam recursos.
Aos 29 anos, ele vive em uma casa e os pais e os irmãos mais novos – um rapaz de 24 anos e uma menina de 16 – em outra.
No ano passado, Tifani foi eleito para o Conselho Municipal de Imigrantes (CMI), um espaço de discussão de políticas para migrantes, refugiados e apátridas ligado à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. Além da participação política, ele também organiza eventos.
CONFLITO NO PAÍS
Tifani assegura que pretende voltar um dia para a República Democrática do Congo, mas só como visitante. Ele permanece preocupado com a situação da nação, que, há pelo menos três décadas, trava uma batalha contra Ruanda.
Segundo Tifani, a RDC é rica em minérios, como ouro e cobalto, cobiçado por Ruanda, que financia o grupo armado chamado M23 (Movimento 23 de Março). Cerca de 12 milhões de pessoas já perderam suas vidas no conflito.
Ele e alguns conterrâneos estão organizando uma manifestação para o dia 24 de março, na Avenida Paulista, visando a chamar a atenção para a situação de seu país. “Quando conflitos dessa magnitude acontecem na África, passa de forma muito rápida na mídia, ninguém fala nada. Por isso, queremos fazer esse alerta”, conclui.