
Em outubro, mês missionário, também é tempo de conscientização sobre o dízimo, preceito da Igreja e prática que tem origem bíblica. Em entrevista ao O SÃO PAULO, Dom Rogério Augusto das Neves, Bispo Auxiliar de São Paulo e Referencial para a Animação Missionária, refletiu sobre o sentido do dízimo, ressaltando que não se trata de uma “promessa de prosperidade material, mas expressão concreta de fé e gratidão”.
O SÃO PAULO – O que é o dízimo para a Igreja Católica?
Dom Rogério Augusto das Neves – O dízimo corresponde à obrigação que todo católico tem de socorrer a Igreja em suas necessidades materiais. O Código de Direito Canônico oferece a base para o que chamamos de dízimo. Esse fundamento está no cânon 222, que traz dois parágrafos importantes. O primeiro afirma que “os fiéis têm a obrigação de prover às necessidades de Igreja, de forma que ela possa dispor do necessário para o culto divino, para as obras de apostolado e de caridade, e para a honesta sustentação dos seus ministros”. Essas são as finalidades dos bens temporais da Igreja. Ela não os possui para enriquecer, mas para cumprir sua missão. O segundo parágrafo acrescenta “a obrigação de promover a justiça social e, lembrados do preceito do Senhor, de auxiliar os pobres com os seus próprios recursos”. Portanto, o dízimo se insere neste contexto mais amplo: é expressão concreta da corresponsabilidade dos fiéis na missão da Igreja.
Qual é a teologia do dízimo em relação à compreensão do Antigo Testamento?
A teologia católica do dízimo aprofunda e supera a compreensão presente no Antigo Testamento. O que chamamos de dízimo hoje não se limita à prática bíblica de oferecer 10% da renda; o essencial é a dimensão teológica dessa oferta, que expressa que tudo pertence a Deus. Por outro lado, se o dízimo fosse apenas um modo de captação de recursos, perderia seu sentido espiritual. Ele está fundamentado na Sagrada Escritura, não apenas nas passagens que falam de dinheiro, mas também nas que tratam da oferta total a Deus, como o sacrifício de Abraão. Quando Deus pede a Abraão que ofereça Isaac, não deseja a morte do filho, mas quer provar se ele reconhece que tudo, até o que tem de mais precioso, pertence a Deus. O mesmo se vê na oferta da viúva elogiada por Jesus, que deu tudo o que possuía.
Nos tempos bíblicos prevalecia a chamada “teologia da retribuição”, que hoje se reflete, em certos lugares, na teologia da prosperidade. Dentro dessa mentalidade, o dízimo era entendido quase como um contrato entre Deus e o povo. Não se tratava ainda de uma relação de gratuidade e reconhecimento da misericórdia divina, mas de troca.
Por isso, a compreensão católica é diferente. Mais importante do que o valor, os 10%, é o que ele significa: o reconhecimento de que Deus é o Senhor de tudo. Nossa relação com Deus é de fé, não de troca. O dízimo é, portanto, um sinal de amor, gratidão e reconhecimento, não um pagamento por bênçãos. Quem compreende isso não dá uma esmola a Deus, mas oferece um sinal concreto de que tudo o que tem vem Dele.

O dízimo também tem uma dimensão eclesial?
Sim. O dízimo é mais do que um gesto individual; é um ato de comunhão com a Igreja. Essa dimensão é teológica e, também, cristológica, porque está enraizada no próprio Cristo. A Igreja é de Cristo, e enxergá-la apenas com um olhar humano é não compreendê-la em sua verdade. Cristo amou a Igreja não porque fosse perfeita, mas porque a amou. Assim, a nossa resposta é de gratidão. Cremos em Cristo e cremos na Igreja; amamos Cristo e amamos a Igreja.
Portanto, podemos dizer que o dizimista participa da missão da Igreja?
Sem dúvida. A Igreja é missionária por natureza, não apenas ad gentes, mas em todos os lugares e situações. A corresponsabilidade do dizimista é uma forma concreta de participação nesta missão. Jesus disse: “Quem der, ainda que seja um copo d’água a um desses pequeninos, porque é meu discípulo, não ficará sem recompensa”. O Papa Bento XVI lembrava que a palavra “Igreja” – ekklesia, “os chamados de fora”, “convocados” – originalmente se refere à Igreja Católica, que é a realidade querida por Cristo. A razão de ser da Igreja é a missão. Nós somos cristãos hoje porque missionários vieram até nós; ninguém conheceu Cristo senão por meio da mediação da Igreja.
O dizimista pode ser comparado a um benfeitor ou doador?
O dizimista é mais do que um benfeitor; é alguém convertido ao sentido do dízimo. Eu mesmo vivi uma experiência que me marcou profundamente. Comecei a contribuir com o dízimo por volta dos 18 anos de idade, em uma fase de rebeldia. Eu trabalhava, ganhava bem, mas não ajudava em casa. Um dia, minha mãe perguntou como eu usava meu dinheiro, e percebi que não sabia responder. Pouco depois, encontrei o comprovante de pagamento do meu pai e descobri que ganhava mais do que ele – e que ele sustentava seis pessoas enquanto eu não ajudava em nada. Senti vergonha e tomei uma decisão: começaria a pagar o dízimo e a dar uma ajuda mensal à minha mãe. Desde então, nunca mais tive dificuldade financeira. Percebi que o dízimo não era um milagre, mas uma forma de colocar ordem na vida. Ao reconhecer que tudo vem de Deus e ajudar quem está à minha volta, encontrei equilíbrio. Desde então, o dízimo se tornou um compromisso pessoal; onde quer que eu esteja, sempre separo o que me propus a dar.

É isso, então, que o difere de outras formas de oferta ou caridade?
De fato, eu não considero o meu dízimo uma caridade, embora parte dele possa ser destinada à ação caritativa da Igreja. Caridade é quando tiramos algo a mais do que nos cabe. Na liturgia, a oferta tem um sentido próprio: é o gesto de unir-se ao sacrifício de Cristo. O dízimo é um compromisso de vida que liberta e ordena o coração.
E quando alguém passa por dificuldades financeiras e não consegue manter o dízimo?
Algumas pessoas interpretam o dízimo apenas como um dever moral e sentem culpa por não consegui-lo cumprir. Em certos casos, ele pode se tornar até matéria de confissão, mas é preciso discernimento. Se a omissão nasce do apego e da ganância, pode haver pecado. Mas, para a maioria das pessoas simples, que passam por dificuldades, isso não é pecado. Deus não pede o que não podemos dar. Cabe aos pastores e catequistas ajudar os fiéis a compreenderem isso. Mesmo quem não pode contribuir financeiramente pode doar de outras formas, oferecendo aquilo que tem. O importante é a ordem interior: o dízimo ajuda a colocar a vida em harmonia.
O senhor já viveu experiências marcantes relacionadas ao dízimo nas comunidades onde atuou?
Na última paróquia onde estive como pároco, durante sete anos, vivemos o período da pandemia. Nossa arrecadação não era alta, mas as pessoas iam até a secretaria para pagar o dízimo, mesmo quando as igrejas estavam fechadas. Nesse período, estávamos construindo uma nova igreja – uma obra grande, erguida sobre a antiga. Conseguimos terminá-la graças à perseverança da comunidade. Quando a pandemia terminou, a igreja estava pronta. Pouco depois, foi ali que fui ordenado Bispo. O dízimo sustentou a paróquia, não apenas financeiramente, mas espiritualmente.
Qual o papel dos agentes da Pastoral do Dízimo nesta missão?
Eles são evangelizadores. Sua missão não é aumentar a arrecadação da paróquia, mas é justamente ajudar os fiéis a despertar a consciência e a viver uma verdadeira conversão. Nos Atos dos Apóstolos, vemos que os primeiros cristãos “tinham tudo em comum” e que suas ofertas nasciam da fé, não da obrigação. Ser comunidade é partilhar: reconhecer que a Igreja não é apenas o lugar onde se reza, mas também uma casa que precisa ser sustentada por todos. O dízimo não é promessa de prosperidade material, mas expressão concreta de fé e gratidão. O verdadeiro compromisso do dizimista é com Deus.