Iniciativa viabilizada pela Rede Gerando Falcões e o Instituto Vozes das Periferias, com o apoio da Prefeitura de São Paulo e da iniciativa privada, tem mudado a vida da comunidade local, acompanhada pela Igreja Católica

Quem chega pela primeira vez à Favela Haiti, no distrito da Vila Prudente, zona Leste da capital paulista, rapidamente se encanta com os murais coloridos nas fachadas das casas, com a Praça Chicão bem conservada e com os espaços de lazer para as crianças. Também é impossível ficar indiferente às fotos do antes e depois da revitalização dos espaços e à beleza e organização da horta comunitária.
Até 2022, esse era um cenário impensável para as cerca de 290 famílias que ali vivem, incluindo 250 crianças. Naquele ano, a comunidade aceitou participar do projeto piloto Favela 3D, idealizado pela rede de desenvolvimento social Gerando Falcões (@gerandofalcoes), que a partir de tecnologias sociais inovadoras e replicáveis busca transformar as favelas em ambientes Digitais, Dignos e Desenvolvidos (3D). “A atuação é multidimensional e em rede, com forte protagonismo das lideranças e comunidades dos territórios, iniciativa privada e poder público”, informa a rede em seu site.
Na Favela Haiti, o projeto iniciado em junho de 2023, com duração de dois anos, é coordenado pelo Instituto Vozes das Periferias (@vozesdasperiferias), e o processo de revitalização teve o apoio do festival The Town São Paulo, Gerdau e Fundação Grupo Volkswagen, além da Prefeitura de São Paulo.
Na última semana de março, a reportagem do O SÃO PAULO visitou a Favela Haiti e visualizou nesse projeto a concretização de muitos ideais tratados na Campanha da Fraternidade deste ano, com a temática da Ecologia Integral, a qual não se limita ao pensamento de uma “ecologia verde” – o zelo pelas florestas, rios, biomas etc. – mas atenta-se ao cuidado com o meio ambiente como um todo, ou seja, com o ambiente “em que vivemos e nos relacionamos: da cidade, do trabalho, da família, da espiritualidade, enfim, o cuidado com todas as relações humanas e sociais que compõem a nossa vida nesta Casa Comum” (texto-base da CF 2025, 9).

Ampla escuta à comunidade
No projeto Favela 3D, a proposta é transformar a vida das famílias, por meio de ações que promovem o fortalecimento comunitário, a empregabilidade, o empreendedorismo, a capacitação e o acompanhamento individualizado.
Na Favela Haiti, o processo começou com um diagnóstico comunitário para identificar o percentual das pessoas em situação de vulnerabilidade. Posteriormente, definiram-se as prioridades de ação em três grandes frentes: urbanismo e moradia; geração de renda; e desenvolvimento social.
“Após ter sido fechado o diagnóstico com as informações, veio a parte de como a comunidade ia aderir a esse projeto. Ainda em 2022, a comunidade escolheu uma equipe de seis pessoas para a coordenação da comissão de moradores”, detalhou Lucas Assunção, morador da favela há seis anos e atual presidente do Instituto Favela Haiti 3D.

Lucas lembrou que todas as intervenções realizadas tiveram a anuência dos moradores, como ocorreu, por exemplo, com a pintura nas fachadas de algumas casas para formar o mural 360º “Raízes do Futuro”, concebido pelo artista Wes Gama, em parceria com a Pública Arts. Assim também se deu com a Praça Chicão, idealizada pela arquiteta Josiane Retzlaff, e construída voluntariamente por estudantes da Escola da Cidade. O projeto arquitetônico expressa a união da comunidade em prol do bem comum.
Todo esse processo remete ao que diz o Papa Francisco na encíclica Laudato si’ sobre as intervenções para melhorias nas localidades mais pobres das cidades: “No debate, devem ter um lugar privilegiado os moradores locais, aqueles mesmos que se interrogam sobre o que desejam para si e para os seus filhos e podem ter em consideração as finalidades que transcendem o interesse econômico imediato” (LS 183).

Estruturas sustentáveis e dignidade humana
Na revitalização da Favela Haiti, a sustentabilidade é uma das marcas. A sede do Instituto, erguida em cerca de 25 dias, tem paredes feitas com placas de madeira tratada e revestidas com material reciclável, altamente resistente, impermeável e que proporciona conforto térmico. Já as telhas são feitas de um composto de pasta de dente e caixas de leite longa vida. Outras cinco casas foram feitas na comunidade com esses materiais, em substituição a barracos de madeira.
Na sede do Instituto, além de toda a estrutura administrativa do projeto, há uma sala para atendimento psicossocial, a Rádio Comunidade Haiti, de onde são transmitidos informes aos moradores por meio de alto-falantes; e a sala do contraturno escolar, para crianças de 6 a 12 anos, com uma turma pela manhã, das 8h às 11h30, e outra à tarde, das 14h às 17h.

Verlaine Soares, pedagoga, é uma das professoras do contraturno. Ela contou que a preocupação central é a de complementar o aprendizado das crianças, especialmente em leitura e matemática. Também há aulas de inglês duas vezes por semana, e na sexta-feira acontece o dia da descoberta, no qual são trabalhados temas como alimentação saudável, artes, sustentabilidade e aspectos da cultura mundial.
Na sala estilizada com as mãos coloridas de crianças em uma das paredes, Verlaine busca não só ajudar os estudantes a superar as defasagens de aprendizado, mas a enxergar um mundo de oportunidades: “Eu quero que eles tenham sonhos. Ainda hoje quando eu pergunto ‘O que você quer ser quando crescer?’, alguns respondem ‘gari’, outras ‘empregada doméstica’. São profissões dignas, claro, mas sempre procuro mostrar a eles que aqui não é o mundo todo e que podem querer mais para as suas vidas”.

Emprego e renda
Nestes dois anos do projeto Favela Haiti 3D, uma das preocupações centrais foi com a autonomia financeira das famílias. Por isso, foram ofertados cursos de capacitação, muitos na área de estética, porém, mais recentemente, houve a formatura do Curso de Energia Solar, do qual resultou o projeto de iluminação das vielas com energia proveniente de dez placas fotovoltaicas que também alimentam a sede do Instituto.
A maioria das oportunidades vieram dos contratos de trabalho firmados com a Prefeitura de São Paulo por meio do Programa Operação Trabalho (POT) para agricultura – nos cuidados da horta comunitária – e para zeladoria – para cuidar de praças na região. Como a vigência é de dois anos, todos agora vivem a expectativa de que a Prefeitura renove a parceria, pela qual cada participante recebe um salário-mínimo por mês.
Aline Gonçalves, líder de geração de renda do Instituto Vozes das Periferias, explicou que atualmente há 98 pessoas trabalhando por meio dessa iniciativa, mas muitas outras já participaram e após os cursos de qualificação encontraram propostas melhores de emprego ou voltaram às suas cidades para montar seus negócios. Outra iniciativa é o programa Jovem Aprendiz do grupo Volkswagen, que já emprega 11 jovens da comunidade.

Muitas vidas transformadas a partir da horta comunitária
Para muitos moradores, a participação no projeto da horta comunitária representou o primeiro passo de mudança de vida. No começo, eram cerca de 20 participantes, hoje são oito. A maioria dos que saíram obteve melhores oportunidades de emprego, graças às capacitações recebidas. Na jornada de cinco dias de trabalho, um é destinado à capacitação e quatro à produção dos itens.
A horta comunitária foi montada em um terreno cedido pela Enel São Paulo. Onde antes havia lixo espalhado, hoje há 62 canteiros organizados, feitos de barro, madeira ou tijolo, nos quais são produzidas, sem uso de agrotóxicos, hortaliças, frutas e legumes, como alfaces roxa, crespa e mimosa, rúcula, coentro, salsinha, couve-manteiga, tomate, pimentão e morango.

“Tudo que é produzido é vendido pelos participantes do projeto. Eles fazem a administração, o fluxo de caixa, veem o que é preciso repor de materiais, tudo isso usando o lucro das vendas da horta. A ideia é que depois de finalizado esse contrato de dois anos, eles consigam empreender por si, ou seja, que abram um CNPJ para a horta, e possam sobreviver desse negócio”, detalhou Aline Gonçalves.
Além dos moradores da própria favela e de comunidades vizinhas, a horta já tem alguns clientes fixos, como uma pizzaria em Higienópolis, que sempre compra rúcula, um restaurante na própria Favela Haiti e duas lojas de um shopping próximo.
Mas para quem está no dia a dia com a mão na terra, manter a horta não é apenas uma questão de autonomia financeira. Janaína Paiva, que participa do projeto desde o início, antes trabalhava como cuidadora de idosos. Tudo que aprendeu sobre cultivo foi trabalhando na horta comunitária e nos cursos de capacitação. Agora, busca transmitir estes saberes: “Já pedimos às famílias da comunidade para colocarem em um baldinho separado as cascas de frutas e legumes para que possamos usar na nossa composteira para produzir adubo. Embora nem todos façam isso, alguns já começaram a fazer”.
O alagoano João Paulino cresceu na roça, mas quando veio para São Paulo passou a ter renda trabalhando em um bar. O projeto da horta comunitária permitiu que ele voltasse ao ofício que ama, conciliando-o com sua mercearia. Joãozinho, como é mais conhecido, não tem dúvidas de que o projeto da horta faz as pessoas entenderem mais de perto a importância de uma relação harmoniosa com a natureza.

“Estar aqui faz muito bem para a saúde. Você pode chegar com qualquer problema mas basta começar a trabalhar e conversar com a plantação que tudo passa. Tenho um grande carinho pela horta, porque sei que aquilo que estou plantando vai beneficiar um bocado de brasileiros, já que aqui é tudo orgânico, plantado e cuidado com carinho”, afirmou João, revelando o desejo de, em breve, engajar mais pessoas na comunidade para que façam a separação de lixo orgânico em suas casas e se beneficiem do que for colhido na horta.
Talvez Joãozinho nem saiba, mas também está colaborando para construir a Ecologia Integral, pois como aponta o Papa Francisco na Laudato si’, “verifica-se a libertação do paradigma tecnocrático em algumas ocasiões, por exemplo, quando comunidades de pequenos produtores optam por sistemas de produção menos poluentes, defendendo um modelo não consumista de vida, alegria e convivência. Ou quando a técnica tem em vista prioritariamente resolver os problemas concretos dos outros, com o compromisso de ajudá-los a viver com mais dignidade e menor sofrimento” (LS 112).
Acompanhamento pastoral
A sede do Instituto Favela Haiti 3D está construída em cima da capela da Comunidade Nossa Senhora das Graças, que integra a Área Pastoral São José Operário, cuja sede é a comunidade de mesmo nome, no Favelão da Vila Prudente. Essa área pastoral, vinculada à Paróquia Santo Emídio, também é composta pelas Comunidades São Francisco de Assis, na Favela Ilha das Cobras, e Nossa Senhora Aparecida, no Morro do Péu.
Por mais de 40 anos, esta Área Pastoral esteve sob os cuidados da Congregação do Espírito Santo (Padres Espiritanos), mas desde março de 2024 o Padre José Geraldo Rodrigues Moura, Vigário Paroquial da Paróquia Santo Emídio, é o responsável pelo acompanhamento pastoral das quatro favelas.

O Sacerdote acompanhou a reportagem do O SÃO PAULO na ida à Favela Haiti. Ele destacou que além da atenção com as melhorias sociais, a Igreja realiza um intenso trabalho de evangelização. “Nas comunidades, temos as turmas de Catequese, formação bíblica e formação humano-afetiva. A cada domingo, presido missa em duas comunidades, e em outras duas há celebração da Palavra. No domingo seguinte, inverto. Além disso, a cada quinta-feira, celebro em uma dessas comunidades”, detalhou o Padre José Geraldo. Na Comunidade Nossa Senhora das Graças, a missa dominical é às 10h. Quando há missa às quintas-feiras, o início é às 19h.
O Sacerdote ressaltou que a comunidade católica e a associação de moradores têm atuado em conjunto, o que indica que as pessoas nas favelas anseiam pela presença da Igreja. “Sempre defendo que temos de abraçar as questões das favelas, cuidar das crianças, cuidar da vida como um todo. Não é pensar só em uma parte dos fiéis. Pensar no todo, isso é a Ecologia Integral e é assim que se aplica a ideia de Casa Comum. A Ecologia Integral requer pensar no conjunto das pessoas, o que envolve tratar de moradia, saneamento básico, questões de saúde e de alimentação. É o cuidado do ser humano como um todo, pois se a pessoa aprende bem, vai cuidar integralmente da vida do planeta”, ressaltou.
E de agora em diante?

A proximidade do fim do projeto Favela Haiti 3D não é vista com preocupação pelas lideranças locais, especialmente pelo fato de que ao longo dos últimos dois anos foi possível constituir o Instituto Favela Haiti 3D para que as ações tenham continuidade.
“A gente tem um trabalho muito grande pela frente. Com o nosso Instituto formalizado, poderemos seguir a partir do legado que o projeto deixará em nosso território”, afirmou Lucas Assunção.
“Mesmo com o fim do período do projeto, a gente terá todo um acompanhamento do Instituto Vozes das Periferias e da Gerando Falcões, para que a gente consiga captar recursos, fazer tratativas com o poder público e o setor privado, e, assim, manter os projetos. Temos certeza de que o bonde vai andar de maneira eficiente”, concluiu o presidente do Instituto Favela Haiti 3D.
Muito boa a reportagem, motivacional pras outras comunidades, no sentido que todos podem aplicar seus dons para o bem comum.