Meus encontros com Dom Paulo

Luciney Martins/O SÃO PAULO – set.2015

Dom Paulo Evaristo Arns já era o Arcebispo de São Paulo e Cardeal da Igreja quando, no início dos anos 1970, eu ainda era estudante, em Curitiba (PR). A imprensa trazia frequentes matérias sobre suas denúncias corajosas contra a tortura, a repressão às liberdades democráticas e sobre o desrespeito aos direitos humanos durante os anos do regime militar.

O primeiro encontro próximo com Dom Paulo aconteceu em 1979. Eu tinha menos de dois anos de padre, na Diocese de Toledo (PR), e o Papa Paulo VI nomeou Dom Geraldo Majella Agnelo, do clero de São Paulo, como Bispo de Toledo. Dom Paulo ordenou Dom Geraldo na Catedral da Sé no dia 6 de agosto de 1978, na mesma hora em que se anunciava ao mundo o falecimento de Paulo VI. Dom Geraldo convidou Dom Paulo para a bênção inaugural do seminário diocesano “Maria, Mãe da Igreja”, de Toledo, do qual eu era o primeiro reitor, no dia 4 de maio de 1979. Naquela circunstância, meu encontro com Dom Paulo não passou de uma ligeira saudação e pude ouvir dele algumas palavras de encorajamento.

Muito tempo se passou até que, em 28 de janeiro de 1991, tive o meu segundo encontro pessoal com Dom Paulo. E foi surpreendente. Ele fazia visitas à Santa Sé e estava hospedado no Pontifício Colégio Pio Brasileiro. Justamente naqueles dias, estava marcada minha defesa de tese de doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, onde também estudavam vários padres da Arquidiocese de São Paulo.

O Cardeal decidiu que assistiria à minha defesa de tese. Embora me sentisse muito honrado por tão ilustre presença, isso me valeu algum nervosismo suplementar no ato acadêmico mais importante da minha vida. E não apenas a mim: na banca, composta por ilustres professores da Gregoriana, houve um arranjo de última hora e, um deles, que havia examinado minha tese, foi às pressas substituído pelo próprio Decano da Faculdade, Prof. Padre Gerald O’Collins, SJ, para presidir o ato acadêmico. No final, tudo acabou bem e com festa. Naquela ocasião, Dom Paulo não podia imaginar, nem passava minimamente pela minha cabeça, que o jovem estudante, cuja defesa de tese ele acabava de assistir, viria a ser seu sucessor na cátedra episcopal de São Paulo, da qual ele fazia defesas bem mais importantes para o povo, para a vida e a missão da Igreja na grande cidade e em favor do povo.

Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO – set.2015

Novos encontros, mais frequentes, começaram a acontecer a partir de 2002. Dom Paulo já era Arcebispo Emérito e eu, havia pouco, era Bispo Auxiliar de São Paulo, encarregado pelo Cardeal Cláudio Hummes, sucessor de Dom Paulo na Sé de São Paulo, de cuidar pastoralmente daquela mesma Região Episcopal Santana, em que Dom Paulo iniciou seu episcopado em São Paulo. Dom Paulo morava no Jardim Guapira, bairro do Jaçanã, também na Região Episcopal Santana, numa casa que a Arquidiocese colocou à sua disposição.

Nas minhas visitas a ele, Dom Paulo gostava, entre outras coisas, de recordar o tempo em que foi Bispo Auxiliar de São Paulo e encarregado, pelo Cardeal Agnelo Rossi, de cuidar da Região Episcopal Santana. De fato, isso durou apenas quatro anos, pois em 1970 o Papa Paulo VI o nomeou Arcebispo de São Paulo e, em seguida, Cardeal da Igreja. Na frente da sua casa, no Jardim Guapira, havia um São Francisco entre laranjeiras e pitangueiras, o “irmão lobo” a seus pés, em atitude de contemplação e louvor ao “altíssimo, onipotente e bom Senhor, por todas as suas criaturas”. Dentro da casa, perto da capelinha, um aquário com diversos peixes coloridos. Dom Paulo batia as mãos e conversava com os peixes, que vinham à flor d’água.

Em 2008, eu já era Arcebispo de São Paulo e o Cardeal mudou sua residência para uma casa pequena e simples em Taboão da Serra (SP), junto ao convento das Irmãs Franciscanas da Ação Pastoral, às quais ele estava muito ligado. Da frente da casa, avistava-se no horizonte uma parte da zona Sul da metrópole. Mostrando-se para a imensidade da cidade, com os braços bem largos, ele dizia: “Rezo todos os dias pelo Arcebispo e pela Arquidiocese!” Minhas visitas a Dom Paulo eram regulares. Encontrava-o sempre com algum livro por perto. Certa vez, disse-me que lia todos os dias algum texto da Patrística, em grego ou latim, para exercitar a memória. Ele era Doutor em Letras pela Universidade da Sorbonne, em Paris, com especialização em Patrologia e Pedagogia.

Falava com admiração e vivacidade sobre o Papa Paulo VI e se alegrou muito quando soube que ele seria beatificado, em outubro de 2014. Infelizmente, o Cardeal não chegou a ver a canonização do Papa, ocorrida pouco tempo após a morte de Dom Paulo, em 2016. Estava sempre informado sobre os acontecimentos da Igreja e da sociedade. Irmã Teresinha, da comunidade religiosa ao lado de sua casa, como um anjo da guarda, velava dia e noite para que nada lhe faltasse. Na casa, somente poucas coisas. Na parede, o crucifixo, uma estampa de Paulo VI e fotografias da família, alguns livros na estante, a mesinha, a poltrona, a cadeira sempre pronta para as visitas. No jardim, em meio a numerosas plantas, São Francisco de Assis e o “irmão lobo” continuavam a lhe fazer companhia.

Dom Paulo gostava de comemorar seus aniversários com as pessoas mais próximas e com antigos colaboradores. Recordava, então, momentos felizes vividos na infância, passada em Forquilhinha (SC), com os pais e os numerosos irmãos. Falava do tempo em que foi professor em Petrópolis (RJ) e atendia pastoralmente uma comunidade “nos morros da cidade”, nos fins de semana. Em 29 de novembro de 2014, Dom Paulo quis celebrar na Catedral da Sé seu 69º aniversário de ordenação sacerdotal; foi a ocasião boa para que muitas pessoas pudessem revê-lo e ouvir dele palavras de apreço pela graça do sacerdócio. Dom Paulo teve ainda a felicidade de celebrar seus 50 anos de episcopado, nesta mesma Catedral da Sé, no dia 2 de julho de 2016, rodeado de bispos, sacerdotes, familiares, antigos colaboradores e muitas pessoas que o admiravam e lhe tinham grande estima.

Luciney Martins/O SÃO PAULO – set.2011

O pastor que se dedicou ao povo de São Paulo, o corajoso defensor da dignidade humana, a voz firme contra torturas e violências praticadas contra indefesos e perseguidos, o defensor da justiça social e da opção preferencial pelos pobres, o formador da opinião pública nos ensinamentos do Evangelho e do ensino social da Igreja gostava de viver, quase como eremita, no seu recolhimento em Taboão da Serra. Bengalinha na mão para apoiar os passos, já inseguros, Dom Paulo viveu serenamente seus dias derradeiros em franciscana simplicidade e quietude, “de esperança em esperança”, até completar 95 anos de idade, 76 de vida consagrada religiosa franciscana, 71 de sacerdócio, 50 de episcopado e 43 de cardinalato.

Tive a graça de acompanhar de perto os últimos momentos significativos em sua vida. Dia 27 de novembro de 2016, Dom Paulo quis ir novamente à Catedral, para celebrar a ação de graças pelos seus 71 anos de sacerdócio. Ali ele dirigiu algumas palavras ao povo e concelebrou comigo a missa dominical. Depois disso, almoçou em minha residência com algumas poucas pessoas. Nessa ocasião, ele já estava com febre e início de pneumonia; mesmo assim, foi uma ocasião feliz para ele, tanto que recordou momentos interessantes de sua vida e, estando já próximo o Natal, entoou uma canção natalina em alemão, recordação do Natal vivido em sua infância, com a família.

Esses foram os últimos momentos públicos de Dom Paulo. Na manhã seguinte, ele precisou ser hospitalizado, para receber os necessários cuidados médicos. A situação se agravou, até o seu desenlace final, no dia 14 de dezembro de 2016. Seu funeral, na Catedral de São Paulo, contou com a participação de muitíssimas pessoas, que lhe prestaram homenagens e reconhecimento durante dois dias. Seu corpo repousa na cripta da mesma Sé, que ele serviu em vida, à espera da ressurreição final, conforme a firme esperança cristã, baseada nas palavras de Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha morrido, viverá. E eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 11,25). Essa foi sempre a grande meta da esperança que animou Dom Paulo, enquanto se dedicou na vida, “de esperança em esperança”, à sua missão e a animar o povo na esperança.

(Adaptação de artigo já publicado anteriormente na coletânea de artigos e testemunhos sobre Dom Paulo, a cargo de Prof. Waldir Augusti)

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