O legado de Paulo e a fraternidade

Luciney Martins/O SÃO PAULO

Duas comemorações importantes têm lugar no dia 25 de janeiro: a conversão de São Paulo – o apóstolo cuja atuação teve um papel fundamental na disseminação do Evangelho aos pagãos – e o aniversário da cidade, que em 2024 completa 470 anos de fundação e cujo nome é uma homenagem ao Santo.

A atuação e o legado de Paulo se mostram um verdadeiro alicerce, sobre o qual a Igreja tem apoiado o seu agir desde os primórdios. No contexto atual – em que o mundo permanece em contínua ebulição, o homem atesta sua incapacidade de dialogar e impõe sua vontade ao semelhante por meio das armas e conflitos –, seus ensinamentos continuam a ser um importante contraponto, encorajando a todos à vivência da unidade e da fraternidade. Não por acaso, a Campanha da Fraternidade (CF) de 2024 aponta para a mesma direção, trazendo como tema “Fraternidade e amizade social”.

BIOGRAFIA

De perseguidor dos que abraçavam a fé em Jesus a intrépido disseminador da Boa-Nova, sua ação missionária impulsionaria o Cristianismo de uma forma inimaginável. Paulo de Tarso, antes conhecido como Saulo, nasceu na primeira década do século I da Era Cristã, o que significa que seria um pouco mais novo que Jesus de Nazaré. Natural da Cilícia (hoje território da Turquia) e membro de uma família pertencente à tribo de Benjamim, era um judeu da diáspora e recebeu uma educação helenística, que lhe conferiu uma mentalidade cosmopolita e o tornou cidadão do mundo.

Detentor de uma sólida formação retórica, conhecedor de idiomas e com singular talento oratório, Paulo era cidadão romano, como ele próprio se identifica pelo autor dos Atos dos Apóstolos, e recebeu influência dos fariseus, uma vez que seu pai pertencia a tal grupo, caracterizado por estritas observâncias religiosas. É nesse contexto que se desenvolveu sua personalidade, sua busca pela Palavra de Deus e, consequentemente, sua fidelidade ao Senhor.

Ainda jovem,  Paulo foi estudar em Jerusalém, na escola de Gamaliel, mestre do grupo dos fariseus, para aprofundar-se no conhecimento da lei e colocá-la em prática. Nessa época, conheceu o Cristianismo, que era tido como uma seita, tornando-se um grande inimigo da nova fé e de seus seguidores, a ponto de persegui-los e prendê-los. Ainda que fosse zeloso, temente a Deus e fiel seguidor do Judaísmo, Paulo agia com violência e total ausência de discernimento.

Conforme a passagem bíblica de At 9,3-9, Lucas relata que, em uma de suas incursões persecutórias e já próximo de Damasco, Paulo “foi de súbito envolvido por uma luz refulgente, vinda do céu. Caído, então, por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: ‘Saulo, Saulo, porque me persegues?’ Ao que ele disse: ‘Quem és Tu, Senhor?’ E este respondeu: ‘Eu sou Jesus, a quem tu persegues…’. Então, trêmulo e atônito, disse ele: ‘Senhor, que queres que eu faça?’. Respondeu-lhe o Senhor: ‘Levanta-te, entra na cidade. Aí te será dito o que deves fazer’. Mais adiante, prossegue o narrador, “os homens que o acompanhavam na jornada encheram-se de espanto. Ouviam a voz, mas nada viam. Saulo ergueu-se do chão mas, ainda que os seus olhos estivessem abertos, nada via. Tomando-o pela mão, os seus companheiros conduziram-no a Damasco. E aí permaneceu três dias, sem ver, sem comer e sem beber”.

Neste episódio, a manifestação divina se dá, pois, sob a forma de luz intensa que somente a Paulo envolve, denotando a sua eleição pelo Senhor e, ao mesmo tempo, trazendo-lhe a cegueira como sinal de ruptura em relação à maneira como até então conduzira sua vida. Este cego, porém, foi capaz de perceber que a relação entre a Voz e a sua pessoa era a do Senhor e a do servo e que seu destino seria traçado em Damasco, com a restituição de sua visão, seu batismo e o início de sua missão de anunciar o Evangelho a toda criatura.

PRESENTE E PASSADO

Um panorama de como se encontra o mundo atual pode ser aferido pelas instituições internacionais que mapeiam diversos indicadores relevantes. Como exemplo, em pesquisa publicada pelo Instituto de Pesquisa de Paz de Oslo, na Noruega (Peace Research Institute Oslo ou PRIO, na sigla em inglês), antes da recente escalada de violência entre Israel e Hamas e dos ataques dos houtis iemenitas às embarcações que navegam pelo Mar Vermelho, constatou-se que o mundo está vivendo a maior onda de conflitos em três décadas: são 55 guerras em curso, envolvendo 38 países. Calcula-se que a média de duração desses conflitos seja de 11 anos, um aumento em relação à última década, cuja média era de sete anos. Além disso, o número de mortos em guerras tem experimentado uma escalada jamais vista em comparação com outros períodos.

Também em sua época, Paulo vivenciou um clima permanente de conflito, dadas a complexidade e as tensões existentes no contexto histórico, cultural e político reinantes. Grande parte do mundo conhecido estava sob o domínio do Império Romano e seu governo, e as regiões dominadas se caracterizavam por uma grande diversidade cultural, étnica e religiosa, o que resultava em atritos entre seus diversos grupos. Até mesmo durante o período da “pax romana” proposta pelo Império, a história mostra que não se tratava de uma paz genuína, mas de uma paz de dominação e subserviência.

Vale lembrar também que Paulo, sendo um judeu, viveu em um contexto em que a comunidade judaica muitas vezes se via em conflito com as autoridades romanas. Isso culminou na revolta judaica que levou à destruição do Templo em Jerusalém no ano 70.

Outra questão delicada que gerou tensões foi o surgimento do Cristianismo como uma nova religião dentro do contexto judaico e romano. Os primeiros seguidores de Jesus, incluindo Paulo, muitas vezes enfrentaram oposição tanto dos líderes religiosos judaicos quanto das autoridades romanas, sem dizer das perseguições aos cristãos por sua recusa em adorar os deuses romanos.

O século I também testemunhou mudanças sociais e econômicas significativas. A urbanização, a escravidão, as desigualdades sociais e econômicas eram questões presentes, contribuindo para um ambiente de tensão e conflito na época de Paulo.

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ANTÍDOTO

Diante de tanta adversidade e falta de entendimento e harmonia, o antídoto apresentado por Paulo para reverter essa situação passa por aquilo que aprendeu de Cristo: a vivência do amor fraterno. O apóstolo sublinha que o amor fraterno é a grande força da evangelização, ou seja, anunciar a Cristo ressuscitado significa viver de forma fraterna, isto é, a vivência comunitária é o testemunho de uma paz que brota do mistério de Cristo. Em diversas oportunidades, Paulo trabalhou vários elementos em suas Cartas que apontam nessa direção, algo que é completamente atual e proposto pela Campanha da Fraternidade 2024, cujo tema é “Fraternidade e amizade social”:

  1. Amor e caridade: Paulo enfatizou a importância do amor e da caridade entre os cristãos. Em sua carta aos Coríntios, especialmente em 1Cor 13, ele fala sobre o amor como algo indispensável, mais elevado do que dons espirituais. Esse amor inclui a ideia de cuidar e se preocupar com os outros, elementos essenciais na amizade e fraternidade.
  2. Unidade na diversidade: Paulo abordou a diversidade dentro da comunidade cristã, ensinando que, apesar das diferenças, os crentes devem viver em unidade. Em Gálatas 3,28, por exemplo, ele escreve: “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus”. Essa mensagem ressalta a ideia de igualdade e fraternidade entre os seguidores de Cristo.
  3. Serviço e humildade: Paulo ensinou sobre o serviço mútuo e a humildade. Em Filipenses 2,3-4, ele exorta os cristãos a considerarem os outros como mais importantes do que a si mesmos, incentivando uma atitude de serviço e humildade que é fundamental nas relações de amizade e fraternidade.
  4. Compartilhar alegrias e tristezas: Em Romanos 12,15, Paulo escreve: “Alegrai-vos com os que se alegram; chorai com os que choram.” Esse ensinamento destaca a importância de compartilhar tanto os momentos de alegria quanto os de tristeza, fortalecendo os laços entre os fiéis.
  5. Perdão e reconciliação: Paulo também abordou a importância do perdão e da reconciliação. Em Efésios 4,32, ele incentiva os cristãos a serem compassivos e a perdoarem uns aos outros, promovendo a paz e a harmonia nas relações interpessoais.

    A paz como dom do Espírito Santo promove a fraternidade universal. Viver a paz, como ensina Paulo, é comprometer-se com a busca do perdão, da reconciliação e do testemunho do amor fraterno para construir a amizade social.
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