Projeto no município de Osasco cria rede de famílias acolhedoras com apoio da USP

Foto: Divulgação/IP USP e Projeto Canguru

Pesquisadora do Instituto de Psicologia coordenou trabalho de formação de famílias que desejam oferecer lar provisório para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade; experiências estão descritas em e-book gratuito

Tão importante quanto ter comida na mesa e um lugar para dormir, é poder crescer em um ambiente receptivo. Isso não é diferente para crianças e adolescentes que, por qualquer razão, são retirados dos cuidados de suas famílias biológicas. Por essa razão, existe o Acolhimento Familiar. Por meio dele, aqueles que estão em situação de vulnerabilidade social encontram um lar temporário, onde podem aguardar a conclusão de seus processos judiciais, sem precisar passar por abrigos. 

No município de Osasco, na região metropolitana de São Paulo, o processo de implantação do Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora Canguru (SAFA Canguru) contou com a coordenação da pesquisadora Andrielly Darcanchy, do Instituto de Psicologia (IP) da USP. A iniciativa que foi criada em 2019, em parceria com a Vara da Infância e Juventude da cidade, já formou 14 famílias acolhedoras e intermediou o acolhimento de 20 crianças e adolescentes. Toda a equipe de acolhimento foi atendida pelo IP, entre 2017 e 2020, num trabalho chamado Plantão Institucional que auxiliou a equipe a refletir sobre o projeto.

A experiência desse trabalho está no e-book Acolhimento de Crianças e Adolescentes em Famílias Acolhedoras: a experiência do Município de Osasco, que traz discussões inéditas na área, como o detalhamento de etapas necessárias para uma boa transição entre a situação de acolhimento familiar e a adoção por uma família substituta. O material está disponível para download gratuito neste link no Portal de Livros Abertos da USP.

O conteúdo envolve desde questões de ordem prática, como a divisão de responsabilidades no processo e o funcionamento da rede de acolhimento, até aspectos mais subjetivos como, por exemplo, dar nome a um bebê durante o período que ele estará sob responsabilidade de uma família de acolhidos.

A publicação também tem como foco divulgar essa prática no Brasil: além da experiência do projeto em Osasco,  apresenta um histórico sobre a maneira como crianças e adolescentes retirados de suas famílias biológicas eram atendidos, até chegar à legislação atual e ao funcionamento de um Serviço de Acolhimento em Famílias Acolhedoras. 

O que é o acolhimento familiar?

O acolhimento, segundo a publicação, é uma medida provisória, que acontece quando a criança ou o jovem, por determinação judicial ou atuação do conselho tutelar, é retirado de sua família de origem e precisa aguardar até que seu processo seja concluído. Nesse período, é preciso encontrar um local para que eles se desenvolvam até que sejam adotados por uma nova família, atinjam a maioridade, ou até, retornem à sua família de origem. Aqueles que não são acolhidos em lares temporários, vão para as instituições, que podem ser abrigos, ou as chamadas “casas-lar”, que são organizações menores, que conseguem atendê-los com mais exclusividade. 

Andrielly explica que nos lares temporários, diferente das instituições, a criança ou adolescente não precisa dividir a atenção do adulto responsável com vários internos. “Isso é muito menos traumático do que ser afastado de sua família de origem para morar em uma instituição. Essa atenção individualizada propicia melhores condições de desenvolvimento.”

Ela ainda ressalta que as famílias acolhedoras são voluntárias e, por isso, a relação que elas constroem com o jovem não está ligada a uma questão  profissional, como ocorre com os funcionários de abrigos ou das casas-lar. “No caso do acolhimento familiar, compreendemos que o desejo de contribuir com aquela história de vida é anterior à preocupação com um vínculo empregatício.” Mesmo sendo um trabalho voluntário, a psicóloga explica que, na maior parte das cidades, é fornecido um auxílio financeiro para ajudar os acolhedores a arcar com os custos extras resultantes de ter mais uma pessoa em casa.

Para receber uma criança em sua casa, as famílias precisam se cadastrar, ser selecionadas, preparadas e acompanhadas por uma equipe técnica, que irá cadastrá-las na Vara da Infância e Juventude. Após esse processo, a família passa a estar apta ao acolhimento, assumindo responsabilidades cotidianas da vida da criança, como levar e buscar na escola, acompanhar em consultas médicas, vacinar etc. 

O acolhimento é o relacionamento mais intenso que já vivi. Digo isso não com a intenção de romantizar o processo. Pelo contrário. Como todo relacionamento profundo, o verdadeiro ato de acolher e ser acolhido é construído no dia a dia, à base de trocas positivas e negativas. O aprendizado é enorme e acompanhar de perto as transformações de vidas e histórias é muito gratificante…. É ter a certeza, na despedida, que tudo valeu a pena”

Depoimento de uma família acolhedora de Osasco

Durante o período que o jovem está em lar temporário, acontece a avaliação da família de origem, processo que analisa a possibilidade de retorno do acolhido a seus familiares. Caso o magistrado decida que não é possível a reintegração pelos parentes, Andrielly destaca que a família acolhedora não pode adotar o acolhido. Nesse caso, ocorre a destituição do poder familiar e aquela criança ou adolescente é encaminhado para adoção. Assim, o acolhimento dura no máximo 18 meses, e não ocupa o espaço da família de origem ou de uma possível família substituta.

Os pré-requisitos para o cadastro de famílias ou indivíduos no Programa Família Acolhedora variam conforme as exigências de cada município. Alguns pontos reforçados são: 

  • a disponibilidade afetiva;
  • ter idade maior de 18 anos (alguns serviços, como o de Osasco, determinam a idade mínima de 25 anos);
  • estar em boas condições de saúde física e mental;
  • não possuir antecedentes criminais;
  • possuir situação financeira suficiente para oferecer moradia e estrutura básicas para o crescimento da criança, independente da bolsa auxílio fornecida por alguns municípios;
  • não ter interesse em adoção.

Acolhimento no Brasil

Devido aos benefícios que o acolhimento familiar possui em relação à institucionalização, a publicação detalha como, no início dos anos 2000, o modelo começou a ser formalizado no Brasil por meio da criação dos Serviços de Acolhimento em Família Acolhedora (SFA). O acolhimento familiar foi instituído então a partir de uma lei sancionada em 2009, como uma medida preferencial em relação ao acolhimento institucional. 

Andrielly aponta, no entanto, que o serviço enfrenta desafios para ser implementado. “Esse processo não recebe a devida atenção, ficando a cargo dos municípios realizarem essa mudança sozinhos. Os dados do Serviços Nacional de Acolhimento revelam que, até hoje, apenas 4% dos acolhidos no País estão em lares provisórios.” 

Segundo a psicóloga, alguns dos motivos que explicam o porquê desta opção ainda ser pouco difundida são a cultura de institucionalização e o preconceito. Ela lembra que a sociedade brasileira ainda convive com a herança do período em que as crianças e os adolescentes retirados de suas famílias e jovens em conflito com a lei dividiam o mesmo espaço nas Fundações Estaduais para o Bem-Estar do Menor, as Febems. Com isso, muitas pessoas entendem que os jovens que são retirados de suas famílias de origem cometeram algum crime, o que reduz o engajamento da população ao programa.

“O histórico das Febems deixou resquícios que exigem uma mudança no olhar. Hoje esses dois públicos estão em serviços diferentes. No entanto, encontramos profissionais até mesmo do Sistema de Garantia de Direitos que ainda confundem esses trabalhos”, alerta Andrielly.

A institucionalização nos primeiros anos de vida

Entre os estudos citados na publicação para discutir os problemas da institucionalização, está o Programa de Intervenção Precoce de Bucareste, desenvolvido pela Universidade de Harvard, na década de 1990. A pesquisa, que se tornou referência nos estudos da psicologia do desenvolvimento, revelou, por meio do acompanhamento de órfãos da Romênia, que a experiência em instituições pode gerar danos cerebrais ao indivíduo, principalmente quando acontece durante os primeiros anos de vida.

Ao longo do programa, verificou-se que os órfãos apresentaram problemas cognitivos, como pontuação de QI abaixo do normal e atraso na aprendizagem da linguagem, que se acentuava quanto menor era a idade que eles haviam sido institucionalizados, e maior era o tempo que eles estavam no orfanato. Assim, a primeira infância, período entre 0 e 6 anos, passou a ser considerada como o período em que a criança é mais vulnerável a experiências de negligência. 

Em resposta a esses e outros estudos, o acolhimento familiar do Brasil e de outros países vem sendo focado nos primeiros anos de vida. Andrielly esclarece que mesmo o acolhimento institucional tem sido melhorado para mitigar os possíveis danos resultantes da institucionalização. 

Ao longo dos anos, foram desenvolvidas estratégias como a redução da quantidade de internos e o aumento do número de funcionários para os abrigos se aproximarem ao máximo de uma residência comum. Contudo, ela completa que “há questões intrínsecas à organização institucional que prejudicam a qualidade dos cuidados ofertados”.

Serviço

O Plantão Institucional do IP oferece serviço gratuito de supervisão de equipes para instituições públicas educativas, atuantes na interface da Educação com a Saúde ou Assistência Social. 

As inscrições para o Plantão Institucional podem ser feitas pelo telefone da secretaria do setor de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia, no telefone (11) 3091-4172, disponível de segunda a sexta feira, das 9h às 16h, ou por e-mail (psicologiaescolar@usp.br). 

A cartilha Acolhimento de Crianças e Adolescentes em Famílias Acolhedoras: a experiência do Município de Osasco está disponível em: http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/749.

Fonte: Valentina Moreira para Jornal da USP

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