Seminarista relata um dia de missão na Cracolândia

Arquivo Pessoal

Ao longo da última semana, três seminaristas de nossa Arquidiocese e eu fizemos nossa Missão de Férias anual na Paróquia Nossa Senhora da Conceição – Santa Ifigênia. Um dos pontos altos de nossa experiência foi no dia 3, quando conhecemos o trabalho da Missão Belém, instituição da Igreja dedicada a ser uma família para quem não tem família, de modo especial as pessoas drogadictas em situação de rua.

Fomos recebidos pelos missionários no prédio “Vida Nova”, onde é feita a triagem inicial dos irmãos durante as primeiras 24 horas em que saem das ruas. Situado na Praça da Sé, junto ao Marco Zero da cidade, lá são acolhidas, todo dia, entre 50 e 60 pessoas. Depois de encaminhados a um rápido cadastro no sistema interno, que permite acompanhar o histórico de eventuais passagens anteriores pela missão, os irmãos tomam banho e recebem uma muda de roupa limpa.

Em seguida, visitamos uma das “casas”, como são chamados cada um dos andares do prédio, com cozinha, sala de estar e dormitório. Cada casa possui um “irmão pai” e um “irmão servo”, responsáveis pela disciplina e pela ordem. Um detalhe importante: esses próprios irmãos pais e servos são ex-drogadictos, que foram recuperados pela Missão e que agora encontram o sentido de suas vidas em ajudar outros a se libertar do vício.

Nessas casas, os novos ingressantes são alimentados e recebem uma cama para repousar, enquanto aguardam o transporte que diariamente vem levá-los a um dos sítios onde se faz a caminhada da Missão, formada por seis meses de convivência fraterna, cultivo da espiritualidade e trabalhos nas diversas frentes de manutenção dos sítios, além da possibilidade de fazerem um curso de capacitação para serem cuidadores de idosos, com a expedição de diploma que facilita sua reinserção social.

Seminarista no prédio ‘Vida Nova’ da Missão Belém

Depois dessa visita ao prédio, cada um de nós seminaristas foi designado para acompanhar uma equipe volante numa experiência de rua: andar pela região da Cracolândia, no esforço de trazer alguns irmãos para a Missão. Fui junto com os missionários Paulo Diones e Ailson, caminhando em direção ao Parque Dom Pedro II, enquanto ouvia sobre a história de vida deles.

Diones é um missionário consagrado da Missão, que está em processo de formação para ser ordenado sacerdote. Ailson é um ex-drogadicto, de 50 anos, que já jogou futebol profissional em Minas Gerais antes de cair nas drogas durante sete anos. Ele ‘está limpo’ há dois anos e faz essas missões de rua pelo Centro histórico com seu violão às costas.

Logo que chegamos à Praça Ragueb Choffi, o olhar experiente de Diones percebeu um irmão que tinha potencial para ser abordado. Era um homem de meia idade, deitado numa maloca improvisada na calçada, com papelões sujos no chão e uns caixotes de madeira como parede. Seu queixo, torso e braço estavam molhados: Diones se aproxima: “Você está vomitando aí, irmãozinho?”, e senta-se ao lado dele. O irmão, visivelmente embriagado, esboça um sorriso, e Ailson não perde a deixa: puxa um louvor com o violão, que nós três cantamos em coro, com a participação do irmão de rua nos refrões.

Embora ele estivesse bastante aturdido, conseguimos conversar: seu nome é Rogério, um paranaense de 47 anos, que bebe desde os 12 (a foto do nosso encontro com Rogério é a que ilustra esta crônica). Um outro homem se aproxima desconfiado, puxando uma carroça de papelão, recolhe um meio sanduíche embrulhado em plástico filme, que estava sobre um dos caixotes, e o arremessa dentro da maloca. “Sou o irmão dele”, explica, antes de sair puxando a carroça.

Diones percebe uma pequena garrafa PET em formato de barril (um corote) de cachaça pela metade, num dos caixotes da maloca, e o exorta com a espontaneidade de um velho conhecido: “Já está na hora de sair dessa vida, Rogério! Não dá pra você passar o dia catando papelão, pra depois comprar corote e ficar desse jeito… Quanto frio não fez essa última noite? Você sabe que a cachaça só dá a sensação de aquecer, mas que no frio ela vai fazendo parar seu coração”.

O homem gosta da atenção, e exclama: “Vocês são ‘da hora’; vocês não têm nojo de mim!”. Cantamos mais uns louvores, e insistimos no convite a sair da rua. Diones toma a camiseta amarrotada e ajuda Rogério a vestir-se, mas ele continua muito relutante: “Mas onde é essa casa de vocês? Lá pode levar minha bebida? Meu irmão não me deixa ir…” Enquanto acompanho o desenrolar da cena, vou meditando os mistérios de nossa fé, encarnados à minha frente: a liberdade com que Deus nos criou, a escravidão do pecado e a luta interior da alma para abrir-se à graça e libertar-se de suas amarras.

Rogério, então, põe-se de pé, cambaleante, olha para mim e interroga: “Você me dá um abraço?” Sinceramente falando, o meu instinto foi de dizer não. “Ele está malcheiroso, sujo, bêbado, e sabe-se lá se pode me fazer algum mal”. Tudo isso passou pela minha cabeça como um relâmpago. Mas, ao mesmo tempo, estava claro que esse abraço podia ser vital para aquela alma, e me lembrei de um conselho que ouvi uma vez de um diretor espiritual: “Dê a mão, cumprimente, e depois, ao chegar a casa, é só se limpar!”. Dei-lhe então um abraço apertado, e ele de novo perguntou: “Por que vocês não têm nojo de mim?”. Diones não pestanejou: “Porque Jesus não teve nojo dos nossos pecados”, e insistiu no convite a vir conosco.

Rogério até nos deixou pegar o corote e guardá-lo em nossa bolsa, e em vários momentos parecia que toparia vir conosco, mas logo depois ele pediu de volta a cachaça, e tivemos de dar-lhe. Durante o próximo louvor, ele tomou mais uns goles do corote. Embora Diones tentasse distraí-lo, o homem voltou a reclinar-se na maloca. Começou a vomitar copiosamente, espichando o pescoço num balde de plástico que tinha lá para isso. Insistimos mais um pouco, mas Rogério não quis vir. Cantamos um último louvor e Diones assegurou-se que Rogério sabia o caminho para “o prédio amarelo” da Praça da Sé, onde ele poderia ser acolhido caso quisesse.

Como nosso horário estava curto, ficamos apenas mais um pouco ali na praça, e conversamos com um outro irmão de rua, um maranhense de 33 anos que chegou a São Paulo há três meses, vindo de um período de trabalho no Rio Grande do Sul, e caiu no crack – como seus dedos queimados deixavam ver. A preocupação dele era que quiséssemos levá-lo a um albergue de pernoite, mas quando entendeu que a proposta da Missão é um lar onde ele poderia permanecer, para voltar a uma vida normal, logo aceitou vir conosco. No meio do caminho de volta, no entanto, ele infelizmente mudou de ideia e desistiu.

Diones me explicou que, muitas vezes, o trabalho do missionário é plantar ali uma semente do amor de Deus, que dará fruto mais tarde, quando a pessoa estiver sem outras esperanças, e se lembrar de que Jesus a está esperando: “É um verdadeiro combate espiritual, o que fazemos.”

Já de volta à sede da Missão Belém, e enquanto esperávamos pelas outras equipes missionárias, perguntei a Diones quanto tempo ele tinha nesse trabalho – e, para grata surpresa de nós todos, ele se deu conta que exatamente naquele 3 de julho completava 10 anos de Missão Belém. As outras equipes logo chegaram, com resultados inspiradores: ao final daquela manhã de missão, um total de 13 irmãos aceitaram sair da rua e começar a caminhada de recuperação. Diones nos acompanhou até a Paróquia, onde o Padre João Paulo Rizek e algumas paroquianas nos haviam preparado o almoço, e um “mimo” da Providência: um belo bolo de morango e chocolate, com o qual lhe cantamos os parabéns pelos 10 anos de serviço a Deus e às almas.

Diante de uma realidade tão brutal como as drogas, essa verdadeira indústria que sobrevive à custa de tantas almas e famílias destruídas, Deus seja louvado pelo serviço de amor da Missão Belém!

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