Com a ‘cultura do cancelamento’ em alta, um convite a pensar a ‘cultura do encontro’

‘Cancelamento’ das pessoas, em especial nas redes sociais, pode trazer consequências ruins para toda a sociedade. O Papa Francisco propõe outra via para a convivência com as diferenças e a permanente promoção de diálogo

Crédito da imagem: Gerd Altmann/Pixabay

Conhecido como “cultura do cancelamento”, o movimento de denunciar pessoas na internet teve, inicialmente, a característica de chamar a atenção sobre temas como justiça social e preservação ambiental.

O “cancelamento” pode acontecer com qualquer usuário de mídias sociais, como Twitter e Facebook, seja pessoa física, seja empresa, que, ao ter uma atitude ou fala considerada inadequada, é denunciada a autoridades ou influenciadores digitais que amplificam a mensagem e geram um efeito em cadeia.

O usuário cancelado pode ter sua imagem comprometida e perder milhares de seguidores em um único dia. Em alguns casos, perde-se também patrocinadores, apoiadores e até mesmo eventos e ações culturais ou de marketing podem ser cancelados.

Para entender a “cultura do cancelamento”, a reportagem conversou com especialistas, que explicaram como o fenômeno acontece e quais são as principais consequências.

O que é?

Marcelo Reis, especialista em Gestão Empresarial e Vendas, fundador da MR16, consultor empresarial e idealizador do projeto “Negócios Pro BR”, disse que o “cancelamento” é uma questão complexa e que, como ação, é muito redutiva.

“O ‘cancelamento’ acontece quando uma pessoa, ao ter atitudes ou condutas que não condizem com o que um grupo de pessoas acha ou que não ‘batem’ com seus valores, é simplesmente eliminada, ou seja, param de segui-la ou passam a fazer comentários com o objetivo de acabar com a reputação dela, motivados pela cultura do ódio, que cresceu exponencialmente com a chegada das redes sociais”, disse.

Ele recordou que, no passado, os veículos de comunicação preparavam as pessoas para uma determinada ação de marketing e pouco se conhecia do dia a dia delas ou mesmo suas opiniões. “Tudo era muito direcionado, controlado e cuidado para que não se manchasse a reputação da pessoa ou da empresa representada”, observa.

“Hoje, com as redes sociais, cada um de nós tem na mão uma máquina de mídia. Em questão de segundos, fotos e vídeos são despejados na internet e não temos mais controle sobre isso”, disse Reis. Ele lembrou, ainda, que, em muitos casos, celebridades e influencers opinam ou atuam de forma irresponsável, sem o devido preparo.

“Empresas e marcas que contratam esses influenciadores, num caso potencial de palavras ou ações mal posicionadas, acabam tendo suas imagens arranhadas. Em determinados casos, porém, se as empresas são efetivamente enérgicas e rápidas nas ações corretivas, podem inclusive ter uma saída positiva da situação, pois mostram que não pactuam com atos que não condizem com seus valores”, continuou.

Bruno Pedro Bom é advogado e publicitário, fundador da BBDE Comunicação. É também consultor, professor e palestrante, autor da obra “Marketing Jurídico na Prática”, publicada pela editora “Revista dos Tribunais”.

Para ele, a “cultura do cancelamento” é um comportamento massificado de intolerância digital que busca marginalizar e prejudicar a imagem e reputação de um perfil pessoal ou personalidade jurídica.

“A tomada de decisão não é orientada por uma regra clara, objetiva e tipificada, mas é adotada por meio de ‘juízes virtuais’ que determinam se um comportamento, seja ele uma publicação, seja um comentário, seja um compartilhamento, é aprovável ou não”, afirma Pedro Bom.

Ele salienta ainda que, sob uma ótica filosófica, essa cultura “nos ensina muito mais do que uma visão de comportamento virtual, mas aborda traços comportamentais da natureza humana em querer pertencer a um grupo social, mesmo que para isso sejam necessárias atitudes extremas contra o próximo”.

Bruno Pedro Bom, que é paroquiano da Paróquia Nossa Senhora do Brasil, nos Jardins, recorda que o termo tão somente se readequou semanticamente na conjuntura contemporânea. “Nos relatos bíblicos, o vale dos leprosos era composto de pessoas marginalizadas e esquecidas, que não podiam se aproximar das outras e das cidades, pois eram consideradas impuras. Alguns afirmavam que, se cruzassem com um leproso, atirariam pedras nele e gritariam: ‘Volta ao teu lugar e não contamines os outros’. Não poderíamos afirmar que essa passagem histórica é o que debatemos hoje como ‘cultura do cancelamento’ em esfera virtual?” questiona.

Vitor Friar, psicólogo cognitivo-comportamental, especialista em mindfulness e diretor clínico do Centro de Mindfulness, explica que a “cultura do cancelamento” fala sobre a hipocrisia pessoal mais do que a perversão dos outros.

“Devemos banir a ‘cultura do cancelamento’, porque ela impede que as pessoas tenham a oportunidade de aprender com seus erros, e quem nunca errou que atire a primeira pedra. Ela nos impede de estender a nossa capacidade de empatia e perdão”, considera.

Friar salienta ainda que ter empatia ajuda a regular as emoções e a conectar mais as pessoas socialmente. “Caso contrário, cancelar fervorosamente alguém dispara em nós o ódio, a violência, e pode aumentar as nossas possibilidades de nos comportamos também violentamente. O ‘cancelamento’ ocorre naturalmente, mas com a mídia social essa cultura fica mais visível e, possivelmente, desproporcional.”

Cancelamento corporativo

Ainda não há legislação que tipifique as consequências oriundas da ‘cultura do cancelamento’ (imagem:
Gerd Altmann/Pixabay)

No que se refere ao ambiente de trabalho, Pedro Bom esclarece que o “cancelamento” ganha outra dimensão. “Em relação aos colaboradores, por exemplo, não sendo meramente possível à empresa desfazer uma amizade com o empregado, algumas companhias têm optado pela demissão.”

Ele recorda que o Tribunal Superior do Trabalho tem entendido que são válidas as demissões por exposição inadequada da empresa nas redes sociais e, inclusive, há precedentes que orientam para que o empregado observe a ética, disciplina e seriedade do uso das redes sociais no ambiente de trabalho.

“Os casos mais comuns são os de demissão por justa causa em razão de exposição que atente contra a honra do empregador e violação de segredo sobre a empresa”, comenta.

Quando o “cancelamento” se refere à empresa em si, Pedro Bom afirma que, sob a lente institucional da reputação, “a ‘cultura do cancelamento’ pode ser benéfica para combater atitudes intoleráveis, como homofobia, racismo, machismo ou qualquer tipo de discriminação, e para colaborar com a instituição no diálogo de forma mais eficiente e humanizada com seus clientes, além de despertar iniciativas com propósito, tais como a equidade de gênero, diversidade, sustentabilidade, assistencialismo, por exemplo”.

Marcelo Reis recorda também que o ideal é que haja coerência no discurso e a consciência de que tudo o que está na internet é público e passível de críticas.

“Cada vez mais comitês de crise têm sido instituídos e cláusulas contratuais severas são colocadas em contratos, que preservem o máximo possível as marcas num caso de cancelamento”, conclui.

Vitor Friar relembra que, em alguns casos, o “cancelamento” pode gerar visibilidade: “Temos uma aptidão para o ódio e, apesar de tudo, precisamos estar de olho para não cultivarmos a violência e esquecermos a nossa falibilidade individual”.

Consequências

“Como profissional de imagem e reputação digital, analiso que a ‘cultura do cancelamento’ traz consigo mais consequências negativas do que positivas pela visibilidade projetada. Os impactos comportamentais e psicológicos, principalmente para crianças e adolescentes, podem ser devastadores”, afirma Pedro Bom.

Ele acredita que o ônus de uma rejeição social em esfera digital pode orientar a sociedade a adotar caminhos mais reflexivos, encontrando um equilíbrio no modo de se relacionar nas redes, sempre orientado aos limites e valores de terceiros.

“A cultura do ódio nos mostra que ao mesmo tempo que estamos muito conectados e vivenciamos um momento ímpar na história da humanidade para compartilhar e consumir informação, atravessamos um cenário de altíssima intolerância e sem espaço para a divergência de posições. Quando recebemos uma linha de pensamento divergente dos nossos valores e do círculo social em que estamos inseridos, reagimos de forma intolerante na rede, tornando esse comportamento entusiasmado uma faísca que culmina em um incêndio digital, o qual usa como combustível novos comentários, compartilhamentos e deferências raivosas, o que denominamos ‘efeito manada’”, reforça.

Não há legislação que tipifique as consequências oriundas da “cultura do cancelamento”. “A corrente adotada segue a linha prevista no Código Penal de maneira análoga aos casos de calúnia, injúria e difamação”, explica Pedro Bom, avaliando ser urgente e necessária a tipificação penal desse comportamento digital.

“É fundamental que existam iniciativas de conscientização social em relação aos malefícios de compartilhar informações inverídicas ou, se verdadeiras, com propósito de denegrir a reputação de alguém. O cerne da reflexão é sempre estimular a verificação das informações antes de compartilhá-las e usar o bom senso nas redes, orientado pela máxima cristã: ‘Não faça aos outros o que você não quer que seja feito a você’. Também há a possibilidade de a própria rede social banir o perfil do autor do conteúdo difamatório se a atitude for contra as suas políticas regulatórias da rede”, avalia o advogado e publicitário.

Pedro Bom recorda, ainda, o segundo mandamento de Cristo: “Amar ao seu próximo como a si mesmo”.

“Irmanados na fé cristã, precisamos extinguir a ‘cultura do cancelamento’ por meio do exercício da empatia. Reforço que devemos estimular a reflexão e o diálogo combativo às posturas intoleráveis que não têm mais espaço no contexto vigente”, disse.

‘Cultura do Encontro’

“Cultura do encontro” é um termo recorrentemente usado pelo Papa Francisco ao falar de caminhos para o diálogo e a fraternidade.

Papa Francisco, em viagem ao Iraque, no mês de março, difunde a ‘cultura do encontro’ (foto: Vatican Media)

“Não só vendo, mas olhando; não apenas ouvindo, mas escutando; não só se cruzando com as pessoas, mas se detendo com elas; não só dizendo ‘que pena, pobrezinhos!’, mas se deixando arrebatar pela compaixão; e depois se aproximar, tocar e dizer: ‘Não chores’ e dar pelo menos uma gota de vida”, disse o Papa, em uma das meditações matutinas na Casa Santa Marta, em setembro de 2016.

Francisco afirma que, hoje, as pessoas estão habituadas a uma cultura da indiferença e, por isso, “necessitadas de trabalhar e pedir a graça de fazer uma ‘cultura do encontro’, deste encontro fecundo, deste encontro que restitua a cada pessoa a sua dignidade de filho de Deus, a dignidade de um ser vivo. Nós estamos acostumados com esta indiferença, quer quando vemos as calamidades deste mundo, quer diante das pequenas coisas”.

Em sua mensagem para o 48º Dia Mundial das Comunicações Sociais, Francisco insiste na “Comunicação a serviço de uma autêntica cultura do encontro”. No texto, de 2014, o Papa declara que o mundo tem se tornado cada vez menor, parecendo, por isso mesmo, que deveria ser mais fácil se fazer próximo uns dos outros.

“Os progressos dos transportes e das tecnologias de comunicação deixam-nos mais próximos, interligando-nos sempre mais, e a globalização faz-nos mais interdependentes. Todavia, na humanidade permanecem divisões, e às vezes muito acentuadas. Em nível global, vemos a distância escandalosa que existe entre o luxo dos mais ricos e a miséria dos mais pobres. Frequentemente, basta passar pelas estradas de uma cidade para ver o contraste entre os que vivem nos passeios e as luzes brilhantes das lojas. Estamos já tão habituados a tudo isso que nem nos impressiona. O mundo sofre de múltiplas formas de exclusão, marginalização e pobreza, como também de conflitos para os quais convergem causas econômicas, políticas, ideológicas e até mesmo, infelizmente, religiosas”, continua.

O Pontífice diz que não há outro caminho que não o da união e da solidariedade. “A ‘cultura do encontro’ requer que estejamos dispostos não só a dar, mas também a receber dos outros. Os meios de comunicação podem nos ajudar nisso, especialmente nos nossos dias, em que as redes da comunicação humana atingiram progressos sem precedentes. Particularmente, a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isto é uma coisa boa, é um dom de Deus.”

O discurso mostra que “o ambiente de comunicação pode nos ajudar a crescer ou, pelo contrário, desorientar-nos”. O Pontífice insiste que o ser humano precisa aprender a compreender o diferente. “Uma pessoa se expressa plenamente a si mesma, não quando é simplesmente tolerada, mas quando sabe que é verdadeiramente acolhida. Se estamos verdadeiramente desejosos de escutar os outros, então, aprenderemos a ver o mundo com olhos diferentes e a apreciar a experiência humana tal como se manifesta nas várias culturas e tradições.”

“Não basta circular pelas estradas digitais, isto é, simplesmente estar conectados: é necessário que a conexão seja acompanhada pelo encontro verdadeiro. Não podemos viver sozinhos, fechados em nós mesmos. Precisamos amar e ser amados. Precisamos de ternura. Não são as estratégias comunicativas que garantem a beleza, a bondade e a verdade da comunicação”, salienta o Papa Francisco.

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