Praedicate Evangelium reorganiza Cúria Romana e a projeta para o futuro

Michał Kostrzyński /Unsplash

Manter a Cúria Romana atualizada, sintonizada com as necessidades dos tempos atuais, não é uma tarefa fácil. A nova constituição apostólica do Papa Francisco, Praedicate Evangelium, publicada em 19 de março, chega com a mis- são de projetar a Cúria para o futuro.

Nas palavras do Cardeal Marcello Semeraro, que apresentou o documento no dia 21, a reforma tão esperada desde o início do pontificado de Francisco, em 2013, atende à necessidade de “reorganizá-la de modo novo e conforme as necessidades dos tempos, dos países e dos ritos”, como já pedia o Concílio Vaticano II.

NO PASSO DA HISTÓRIA

A Cúria Romana nada mais é do que o conjunto de organismos ao redor do Sumo Pontífice – o Papa –, aos quais ele recorre para governar toda a Igreja. Antes do século XI, a Cúria simplesmente não existia, até porque o Papa raramente intervinha nas igrejas locais, concentrando-se na Igreja de Roma, da qual é Bispo.

Inicialmente, a Cúria era feita de colaboradores individuais, mas depois ela ganha estrutura, cresce e se torna um mecanismo de governo de toda a Igreja universal. Além disso, por muito tempo o Papa também foi o soberano do Estado Pontifício, que ocupava boa parte do território da Itália.

Entretanto, com todas as mudanças históricas na Igreja, seja em virtude do cisma entre Oriente e Ocidente, seja na abertura de novas fronteiras de missão, como as Américas e a Ásia, seja após a Reforma Protestante, a Cúria Romana teve que se adaptar. Os Papas também mudaram, passando cada vez mais a representar um poder central e de natureza religiosa, mais do que política. Com os novos meios de comunicação, aumenta a visibilidade global do Papa e, consequentemente, a devoção à figura do Sucessor de Pedro.

Hoje, na Cúria também estão reunidos os organismos de caridade e de diplomacia do Papa. Dali partem orientações para toda a Igreja, sem as quais falharia em coordenação e unidade. Como diz o Código de Direito Canônico, por meio da Cúria Romana “o Sumo Pontífice costuma dar execução aos assuntos da Igreja universal, e que desempenha o seu múnus em nome e por autoridade dele para o bem e serviço das Igrejas”.

Até chegar na estrutura atual, a Cúria precisou caminhar conforme cada tempo histórico, passando por algumas reformas. A mais recente, no pontificado de São João Paulo II, que publicou a constituição apostólica Pastor Bonus, de 1988, vigente até hoje. Antes, foram apenas outras três. Praedicate Evangelium se insere, portanto, nesse passo histórico.

CONVERSÃO MISSIONÁRIA

Na introdução da Praedicate, o Papa Francisco fala da necessidade de “renovar a Igreja segundo a imagem da missão de amor própria de Cristo”. A Igreja, incluindo a Cúria Romana, deve refletir no mundo “a luz que orienta o nosso caminho no tempo”, e esta luz, diz ele, é Cristo. Por isso, embora seja um documento de governo, a constituição aparece em um contexto de “missionariedade”.

De acordo com o Cardeal Semeraro, “as mudanças estruturais devem ser o fruto de uma escolha pastoral, e isso vale, obviamente, também para a Cúria Romana”. Ele afirma que esse espírito missionário, ou seja, voltado para fora, e não para dentro, é uma escolha intencional de Francisco desde o princípio do pontificado, e que fica clara no título da constituição: “Preguem o Evangelho”.

“O anúncio do Evangelho e o espírito missionário serão a perspectiva que caracteriza a atividade de toda a Cúria”, recordou o Cardeal, que é Prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. Falando de uma “saudável descentralização”, ele citou Francisco ao dizer que “o Sucessor de Pedro é o perpétuo e visível princípio e fundamento da unidade, seja dos bispos, seja da multidão dos fiéis”.

Desse modo, “a Cúria Romana não é somente um instrumento a serviço do Romano Pontífice, mas também um instrumento de serviço para as Igrejas particulares”. Por esse motivo, a reforma contida na Praedicate tende a dar mais voz às igrejas e bispos locais, principalmente por meio das conferências episcopais, remetendo aos princípios da Igreja. Como escreveu o Papa Francisco em Evangelii gaudium, em 2013, “não é oportuno que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que se manifestam em seus territórios”.

EVANGELIZAÇÃO, FÉ E CARIDADE

As mudanças que ele apresenta, portanto, servem a esse princípio. Evidência disso é a criação de um Dicastério para a Evangelização, que unifica outros dois, a Congregação para a Evangelização dos Povos e o Pontifício Conselho para a Nova Evangelização. Dentro do novo Dicastério, uma seção vai se dedicar às igrejas “jovens”, que estão principalmente em territórios onde a Igreja não é autossuficiente, como na África e na Ásia, e outra seção aos lugares em que a Igreja está presente há séculos, mas perde vigor, como na Europa, por exemplo.

Ao lado desse Dicastério aparecem, na Praedicate, outros dois: o Dicastério para a Doutrina da Fé e o Dicastério para o Serviço da Caridade. Na visão do secretário do Conselho dos Cardeais, Dom Marco Mellino, esses três dicastérios, juntos, “formam um todo unitário na ação missionária”, pois representam a Evangelização, a Fé e a Caridade.

Assim, o Dicastério para a Doutrina da Fé (antes Congregação) mantém o dever de “tutelar a integridade da doutrina católica sobre a fé e a moral”, mas sem abandonar a tarefa de “ajudar o Romano Pontífice e os bispos no anúncio do Evangelho em todo o mundo”. Já o Dicastério para o Serviço da Caridade, hoje conhecido como Esmolaria Apostólica, cresce em importância e “toda concreta, com sua atividade, a solicitude e proximidade do Romano Pontífice, Pastor da Igreja universal, junto àqueles que vivem em situação e indigência, de marginalidade ou de pobreza, como também em situações de grave calamidade”, diz a Praedicate.

Todos os dicastérios passam a ter igual peso “jurídico” entre si, respondendo diretamente ao Papa e sem diferenciação entre “Congregações” e “Conselhos”, como era antes. Num espírito de “sinodalidade dicasterial”, diz Dom Mellino, a Secretaria de Estado do Vaticano, que antes tinha um poder de supervisão sobre os outros dicastérios, passa a funcionar como uma “secretaria papal voltada à realização da unidade e da interdependência entre eles, favorecendo a coordenação sem prejuízo da autonomia de cada um”.

PROFISSIONALISMO E SERVIÇO

“Um aspecto inovador da constituição é o papel dos leigos dentro da Cúria Romana”, notou o canonista Padre Gian- franco Ghirlanda, durante a apresentação da Praedicate. A partir da entrada em vigor do novo texto, em 5 de junho, quase todos os cargos podem ser ocupados por fiéis leigos batizados.

O Direito Canônico, diz ele, “reconhece que, por força do Batismo de todos os fiéis, vige uma verdadeira igualda- de na dignidade e no agir pela qual todos são chamados a cooperar à edificação do corpo de Cristo”. Mais do que isso, todos têm a responsabilidade “de atuação na missão que Cristo confiou à Igreja”. A forma como os diferentes dons se apresentam “são complementares entre elas”, declarou.

Esse aspecto deverá permitir que mais homens e mulheres profissionais possam assumir mais cargos de liderança na Cúria. Além disso, passa a vigorar um mandato de cinco anos para religiosos e sacerdotes: após esse período, via de regra, devem retornar às dioceses ou institutos de origem. Embora o mandato possa ser renovado, segundo o Padre Ghirlanda, isso deixa claro que “as nomeações não sejam ditadas por critérios de avanço de carreira ou trocas de favor, mas por critérios de serviço”.

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