A Congregação para a Doutrina da Fé publicou nesta quinta-feira, 16, um Vade-mécum sobre alguns pontos do procedimento no tratamento dos casos de abuso sexual de menores cometidos por clérigos.
O manual de instruções, que tem pouco mais de 30 páginas divididas em nove capítulos, responde às questões principais sobre alguns pontos de procedimento no tratamento dos casos de abuso sexual de menores por parte de clérigos.
RESPOSTA
Na apresentação Vade-mécum, o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Louis Ladaria Ferrer, explicou que este subsídio nasceu a partir de numerosos pedidos feitos ao seu dicastério por parte de bispos e superiores de institutos de vida consagrada para ter a disposição um instrumento que possa ajudá-los na delicada tarefa de conduzir corretamente os casos que envolvem diáconos, sacerdotes e bispos quando são acusados de abuso contra menores.
“A história recente atesta a crescente atenção da Igreja a este flagelo. O caminho da justiça por si só não pode esgotar a ação da Igreja, mas é necessário chegar à verdade dos fatos. Trata-se de um caminho articulado, que entra no intricado mundo de normas e práticas, diante do qual ordinários e superiores às vezes se encontram na incerteza da direção a seguir”, ressaltou o Cardeal.
O Prefeito enfatizou que não se trata um texto normativo nem foi promulgada nenhuma nova lei ou regra. “Trata-se, ao contrário, de um ‘manual de instruções’, que se destina a ajudar os que devem tratar concretamente dos casos do início ao fim, ou seja, desde a primeira notícia de um possível delito (notitia de delicto) até a conclusão final do caso (res iudicata). Entre estes dois extremos, há momentos a serem observados, passos a serem dados, comunicações a serem ativadas, decisões a serem tomadas”, destacou.
SERVIÇO À VERDADE E À JUSTIÇA
Solicitado durante o encontro dos presidentes das conferências episcopais do mundo sobre a proteção dos menores na Igreja, realizado no Vaticano em fevereiro de 2019, o Vade-mécum é publicado na versão denominada “1.0” porque se prevê a atualização periódica do mesmo baseada na modificação da normativa vigente ou da prática da Congregação.
“Somente um conhecimento aprofundado da Lei e de seus propósitos poderá prestar o devido serviço à verdade e à justiça, a ser procurado com atenção particular em matéria de delicta graviora (crimes mais graves) em razão das profundas feridas que afligem a comunhão eclesial”, lê-se no texto.
Em entrevista ao Vatican News, o Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, Dom Giacomo Morandi, explicou que a eleboração do oducmento contou com contribuição do setor disciplinar que, nos últimos anos, adquiriu uma experiência particular sobre os casos em questão. “O tempo aparentemente longo para sua redação deve-se ao trabalho de defrontação não apenas dentro da Congregação, mas também fora dela, com especialistas na área, outros Dicastérios e, em particular, com a Secretaria de Estado”, ressaltou.
FONTES DE REFERÊNCIA
O que configura um crime, como se dá a investigação preliminar, quais são os possíveis procedimentos penais são, portanto, são algumas das questões que são respondidas de modo preciso e específico, com contínuas referências aos Códigos vigentes, ao Motu proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela, de São João Paulo II, de 2001, atualizado pelo Papa Bento XVI em 2010, e ao mais recente Motu proprio Vos estis lux mundi, publicado em 2019 pelo Papa Francisco.
Ademais, em alguns casos se especificam as diferenças entre o Código dos Cânones para as Igrejas Orientais e o Código de Direito Canônico para a Igreja Latina: por exemplo, na condução de um processo penal extrajudicial – ou seja, administrativo, que reduz as formalidades processuais para acelerar a justiça, mas mantém intactas as mesmas garantias – a Igreja latina não prevê a presença de um Promotor de Justiça, enquanto para as Igrejas orientais é obrigatório.
ACOLHER, OUVIR E ACOMPANHAR A VÍTIMA
O Vade-mécum apresenta quatro necessidades principais. Em primeiro lugar, a tutela da pessoa humana. Pede-se às autoridades que se “comprometam a fim de que a suposta vítima e a sua família sejam tratadas com dignidade e respeito”. É preciso oferecer-lhes “acolhimento, escuta e acompanhamento, inclusive através de serviços específicos, bem como assistência espiritual, médica e psicológica, de acordo com o caso específico”. “Igualmente pode ser feito em relação ao acusado”, ressalta o manual.
Além disso, recorda-se a importância de tutelar “a boa reputação das pessoas envolvidas”, mesmo se, em caso de perigo para o bem comum, se enfatiza que difundir notícias sobre a existência de uma acusação não representa a violação da boa reputação.
DIREITOS DO ACUSADO
Mesmo se “a prática do crime é evidente”, deve ser sempre assegurado ao acusado o exercício do direito de defesa. Ao mesmo tempo, no capítulo 9, ressalta que, a partir do momento em que se recebe a notícia de um possível crime, “o acusado tem o direito de apresentar pedido de dispensa de todas as obrigações relacionadas a seu estado clerical, incluindo o celibato, e, ao mesmo tempo, dos eventuais votos religiosos”. Tal pedido deve ser apresentado por escrito ao Papa, por meio da Congregação para a Doutrina da Fé. Além disso, o acusado pode recorrer contra um procedimento penal ou contra um procedimento administrativo, enquanto a decisão do Sumo Pontífice é inapelável.
VERIFICAÇÃO CUIDADOSA
Um segundo aspecto que emerge do Vade-mécum é a exigência de verificação escrupulosa e cuidadosa de toda e qualquer informação recebida por um ordinário sobre um presumível caso de abuso. Mesmo se não houve denúncia formal, mesmo se a notícia foi difundida pelos meios de comunicação, incluindo as redes sociais, mesmo se a fonte é anônima, o documento sugere avaliar atentamente toda informação recebida e aprofundá-la. Naturalmente, o sigilo sacramental permanece válido: nesse caso, o confessor deverá convencer o penitente a dar, por outros caminhos, conhecimento do suposto abuso.
SIGILO E ANÚNCIOS PÚBLICOS
O terceiro aspecto diz respeito à comunicação. Em vários pontos do Vade-mécum, recorda-se a obrigação de respeitar “o sigilo de ofício”, embora seja ressaltado que, durante a investigação prévia, a suposta vítima e as testemunhas não têm “o vínculo do silêncio em relação aos fatos”. Em todo caso, solicita-se evitar toda “inoportuna e ilegal” difusão de informações ao público, sobretudo na fase da investigação preliminar, para não dar a impressão de já ter definido os fatos.
Ao mesmo tempo, explica-se que, se houver uma apreensão judicial ou uma ordem de entrega dos documentos pelas autoridades civis, a Igreja não pode mais garantir a confidencialidade da documentação adquirida. Um parágrafo se detém, em seguida, sobre comunicados públicos que devem ser feitos durante uma investigação preliminar: nesses casos, recomenda-se cautela e uso de formas “essenciais e concisas”, sem “anúncios retumbantes” e sem pedir desculpas em nome da Igreja, porque desse modo se acabaria antecipando o julgamento sobre os fatos.
COLABORAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO
Como quarto aspecto, o manual trata da importância da colaboração entre Igreja e Estado. Por exemplo, ressalta-se que “mesmo na ausência de uma obrigação normativa explícita, a autoridade eclesiástica apresente queixa às autoridades civis competentes sempre que considerar que isso seja indispensável para proteger a pessoa ofendida ou outros menores do perigo de novos atos criminosos”. Ao mesmo tempo, recorda-se que “atividade de investigação deve ser realizada em conformidade com as leis civis de cada Estado”.
EVITAR TRANSFERÊNCIAS
Por fim, destacam-se outras indicações particulares. A primeira diz respeito às medidas cautelares: elas não são uma penalidade, mas um ato administrativo que pode ser imposto desde o início de uma investigação preliminar para proteger a boa reputação das pessoas envolvidas e o bem público, ou para evitar o escândalo, a ocultação das provas ou possíveis ameaças à suposta vítima. Não mais subsistindo as causas para as mesmas ou concluído o processo, as medidas cautelares podem ser revogadas, mas ao fazê-lo se recomenda “prudência e discernimento”.
A segunda indicação concerne ao uso da terminologia “suspensão a divinis” para indicar a proibição de exercício do ministério imposta como medida cautelar a um clérigo: o Vade-mécum sugere “evitar essa denominação” em fase de investigação preliminar, porque se trata de uma penalidade que em tal fase “ainda não pode ser imposta”. Em vez disso, se use o termo “interdição ou proibição” de um exercício do ministério. Sempre durante a investigação preliminar é solicitado que se evite a transferência do clérigo envolvido.
O texto integral do Vade-mécum pode ser acessado aqui.
(Com informações de Vatican News)