Em exortação apostólica, Bento XVI destacou que a ‘Igreja nasce da Eucaristia’

O SÃO PAULO recorda os principais documentos escritos pelo Pontífice, que morreu no sábado, 31 de dezembro

L’Osservatore Romano

 “Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja” é a motivação essencial da exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis (Sacramento do Amor), lançada pelo Papa Bento XVV, em fevereiro de 2007. 

O documento é fruto do 11º Sínodo dos Bispos, realizado em outubro de 2005, no Vaticano, com o tema “Eucaristia, fonte e ápice da vida e da missão da Igreja”. O documento pontifício aprofunda o mistério eucarístico como responsável tanto pela própria fundação da Igreja quanto pelo alimento de sua caminhada. 

A exortação “Sacramentum Caritatis” é considerada como um dos grandes documentos sobre o sublime sacramento da Eucaristia, como são o Ecclesia de Eucharistia e o Mane nobiscum Domine, ambos escritos por São João Paulo II.

Na ‘Sacramentum Caritatis’, Bento XVI recorda algumas verdades essenciais da doutrina eucarística, exortando a uma digna celebração do rito sagrado, destacando a necessidade urgente de desenvolver uma vida eucarística no cotidiano.

Além disso, o documento exorta a um renovado compromisso na construção de um mundo mais justo e pacífico em que o pão partilhado para a vida de todos seja cada vez mais causa exemplar na luta contra a fome e contra todo tipo de pobreza. 

O MISTÉRIO ACREDITADO

“Sacramentum Caritatis” tem 131 páginas e está dividido em 97 pontos. Além disso, traz 256 notas de rodapé, nas quais o Sumo Pontífice faz referências a outros documentos do Magistério da Igreja.

A primeira parte da Exortação dedica-se à Eucaristia como “Mistério Acreditado”. Nela,  Bento XVI reafirma a fé católica de que “o sacramento do altar está sempre no centro da vida eclesial; ‘graças à Eucaristia, a Igreja renasce sempre de novo!’” (nº 6).

O mistério eucarístico acreditado “insere dentro da criação o princípio de uma mudança radical, como uma espécie de ‘fissão nuclear’ (para utilizar uma imagem hoje bem conhecida de todos nós), verificada no mais íntimo do ser; uma mudança destinada a suscitar um processo de transformação da realidade, cujo termo último é a transfiguração do mundo inteiro, até chegar àquela condição em que Deus seja tudo em todos (1 Cor 15, 28)”.

É também nesta parte que Bento XVI chama a atenção para o fato de que, com o Espírito Santo, a Eucaristia é “constitutiva do ser e do agir da Igreja” (nº 15), e exprime a comunhão eclesial. 

O Pontífice procura vincular todos os outros sacramentos (Batismo, Crisma, Reconciliação, Matrimônio, Ordem e Unção dos Enfermos) com o mistério eucarístico. 

Bento XVI ressalta, ainda, a importância da manutenção do celibato para os padres e defende uma distribuição mais “eqüitativa” do clero, em contraposição a possíveis tendências de relaxamento na seleção e formação de novos sacerdotes. 

O MISTÉRIO CELEBRADO

A segunda parte da “Sacramentum Caritatis”dedica-se à reflexão da Eucaristia enquanto “Mistério Celebrado”. Bento XVI orienta sobre a celebração da Eucaristia, expressa nas comunidades católicas através da liturgia. 

“Na liturgia, brilha o mistério pascal, pelo qual o próprio Cristo nos atrai a si e chama à comunhão” (nº 35). A beleza da celebração está, pois, vinculada ao “amor de Deus que nos foi definitivamente revelado no mistério pascal”. Esta beleza “é expressão excelsa da glória de Deus e, de certa forma, constitui o céu que desce à terra” (nº 36). 

Bento XVI mostra como Cristo se doa inteiro na celebração da Eucaristia, e esta doação exprime também a ressurreição deste Cristo. O Papa afirma, ainda, que “o dia da criação tornou-se agora o dia da ‘nova criação’, o dia da nossa libertação, no qual fazemos memória de Cristo morto e ressuscitado” (nº 37). 

É nesta parte que Bento XVI pede um retorno àquilo que é mais essencial na celebração eucarística, encorajando os padres a valorizarem o latim e o canto gregoriano. Estas orientações, ao contrário do que foi propagandeado, não são um retrocesso do Concílio Vaticano II. Na verdade, o que o papa quer é que os católicos valorizem o latim como língua oficial da Igreja, tornando-se, assim, elemento universalizador do rito eucarístico. Mas, depreende-se também da Exortação que Papa quer que a missa seja inteligível para todos. 

O Sumo Pontífice passa, então, a dar uma série de orientações de ordem técnica para uma celebração eucarística mais digna do mistério pascal. Nestes termos, pede, por exemplo, que os presbíteros tenham presente “a finalidade catequética e exortativa da homilia” (nº 46). 

Sobre o abraço da paz, Bento 16 pede moderação no gesto, “que pode assumir expressões excessivas, suscitando um pouco de confusão na assembléia, precisamente antes da comunhão”. E ressalta que “é bom lembrar que nada tira ao alto valor do gesto a sobriedade necessária para se manter um clima apropriado à celebração, limitando, por exemplo, a saudação da paz a quem está mais próximo” (nº 49). 

Sobre o final da celebração (“Ite missa est”, donde deriva o termo português para a celebração eucarística), o Papa pede atenção e cuidado para a natureza missionária que cada cristão deve assumir após participar da Eucaristia. 

O MISTÉRIO VIVIDO

A terceira e última parte da Exortação dedica-se à reflexão da Eucaristia como “Mistério Vivido”. Para Bento XVI, “de fato, comungando o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vamo nos tornando participantes da vida divina de modo sempre mais adulto e consciente” (nº 70). 

O Papa indica que ao alimentar-se de Cristo, o católico é impelido e atraído para dentro do próprio Cristo. Ele deixa bastante claro que “o costume característico que têm os cristãos de reunir-se no primeiro dia depois do sábado para celebrar a ressurreição de Cristo — conforme a narração do mártir São Justino — é também o dado que define a forma da vida renovada pelo encontro com Cristo”. É desta linha de raciocínio que o Pontífice lance bases para orientar para uma vivência “segundo o domingo”, expressão cunhada por Santo Inácio. 

Para viver o mistério eucarístico, o cristão precisa identificar-se com seu próximo e com ele estabelecer relações de ajuda e solidariedade. Neste sentido, Bento XVI ressalta que a secularização, que apresenta “traços fortemente individualistas, logra seus efeitos deletérios sobretudo nas pessoas que se isolam por escasso sentido de pertença”. É por isso que “desde os seus inícios, sempre o Cristianismo implica uma companhia, uma trama de relações continuamente vivificadas pela escuta da palavra e pela celebração eucarística, e animadas pelo Espírito Santo” (nº 76). 

O documento também abre espaço para refletir sobre a transformação que a Eucaristia promove. Depreende-se deste trecho que é impossível comungar e não ser transformado. “Em suma, ‘no próprio culto, na comunhão eucarística, está contido o ser amado e o amar por sua vez os outros. Uma Eucaristia que não se traduza em amor concretamente vivido é em si mesma fragmentária’” (nº 82). É por isso, também, que os católicos precisam ter uma responsabilidade moral, política e social coerente com a vivência eucarística. 

A Eucaristia, então, deve ser anunciada e testemunhada pelos cristão para que possa ser “pão repartido para a vida do mundo” (nº 88). O católico não pode ficar ‘inativo’ “perante certos processos de globalização, que não raro fazem crescer desmesuradamente a distância entre ricos e pobres a nível mundial”. Bento XVI pede que os cristãos denunciem “quem delapida as riquezas da terra, provocando desigualdades que bradam ao céu”.

Com um exemplo bem concreto, o das “imagens impressionantes dos grandes campos de deslocados ou refugiados”, ou “amontoados em condições precárias para escapar a sorte pior, mas carecidos de tudo”, o Papa questiona: “porventura, estes seres humanos não são nossos irmãos e irmãs? Os seus filhos não vieram ao mundo com os mesmos legítimos anseios de felicidade que os outros?” (nº 90). 

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