Cuidar da saúde mental não é falta de fé nem fraqueza espiritual

Paróquias da Arquidiocese de São Paulo têm implementado projetos para orientação psicológica aos fiéis

Camila era uma católica ativa em sua paróquia. Casada e mãe de uma filha, tinha uma vida com aparente tranquilidade, mas ela enfrentava angústias profundas e tristezas que quase a levaram ao suicídio. 

“Quando recebi o diagnóstico de depressão e transtorno de ansiedade generalizada, parecia que esses termos tinham se tornado meu próprio sobrenome”, relembra. Camila contou a um padre tudo que estava passando e ele a orientou a buscar tratamento psicológico.

“Cheguei à terapia prestes a desistir de tudo, a desistir da minha vida. Minha única esperança era de não deixar minha filha crescer sem uma mãe. Aos poucos, durante o tratamento, percebi que já não era só pela minha filha: eu estava lutando por mim, amando viver, me amando mais e enxergando vida na vida”.

A história de Camila se repete em muitas comunidades paroquiais, mesmo entre aqueles que são ativos na vida da Igreja. Por isso, algumas paróquias têm se atentado pastoralmente à condição integral dos fiéis, abordando corpo, mente e espírito, e implementado projetos para ajudá-los em sua saúde mental.

‘Aprendi a não espiritualizar minha doença’

Muitas pessoas que estão engajadas na Igreja atribuem a depressão e outros transtornos mentais a uma questão de “falta de fé” ou “fraqueza espiritual”, o que dificulta que busquem por ajuda. Vale lembrar, no entanto, que padres muito conhecidos, como Fábio de Melo e Marcelo Rossi, já quebraram esse tabu, admitindo publicamente terem enfrentado a depressão em algum momento de suas vidas.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a saúde mental é definida como “um estado de bem-estar no qual o indivíduo percebe as suas próprias capacidades, pode lidar com as tensões normais da vida, trabalhar de forma produtiva e contribuir para sua comunidade.” A perturbação desse bem-estar pode ser influenciada por diversos fatores. 

“São quatro dimensões que formam a construção humana: a biológica, a psíquica, a social e a espiritual. Elas operam de forma independente, mas interagem dentro do ser humano. Portanto, ainda que alguém tenha uma dimensão espiritual bem desenvolvida, se passar por uma séria alteração hormonal, dificilmente a oração será suficiente para sua recuperação”, explica Aline Rodrigues, psicóloga com 20 anos de experiência e consagrada da Comunidade Canção Nova.

O testemunho de Camila foi compartilhado em uma carta enviada à psicóloga Raquel Bacchiega, coordenadora do Projeto Saúde Mental e Bem-estar para Todos. Camila inicialmente tentou tratar seus sintomas apenas intensificando as práticas de fé, mas na carta ela reconhece que as terapias também foram indispensáveis: “O verdadeiro milagre não foi a cura em si, mas o processo. Aprendi a não espiritualizar minha doença”.

Raquel destaca o papel essencial da Igreja no cuidado da saúde mental de seus fiéis: “A Igreja, sendo o coração que abriga a comunhão de um verdadeiro banquete espiritual, alimenta a alma, muitas vezes abatida pelos desafios da vida por meio da fé. Por que não também proteger a psique, de onde originam todas as capacidades de pensar bem, agir, ser e existir?”, indaga. 

‘A Clínica do Vazio’

A falta de sentido e de propósito na vida, as crises nos relacionamentos e fatores como o luto, separações e desemprego podem desencadear psicopatologias de diversas naturezas, sendo a depressão e a ansiedade as consequências mais frequentes. 

“A pessoa sabe que precisa melhorar, reconhece a dor que sente, mas não entende suas causas, nem sabe por onde começar. Fala de um vazio inexplicável que dói e torna a vida insuportável. Chamamos isso de ‘a clínica do vazio’”, explica Raquel.

Esse vazio, manifestado como profunda tristeza, também já foi alertado pelo Papa Francisco: “A tristeza, a apatia e o cansaço espiritual acabam dominando a vida das pessoas sobrecarregadas pelo ritmo de vida atual. Não nos esqueçamos de que, além do imprescindível acompanhamento psicológico, útil e eficaz, as palavras de Jesus também oferecem consolo. Lembro-me das palavras que tocam profundamente o coração: ‘Vinde a mim, todos vós que estais cansados e oprimidos, e eu vos darei descanso’.”

Do confessionário ao consultório

A identificação de que as angústias pessoais podem ir além das questões de fé muitas vezes podem ser percebidas por um sacerdote nos atendimentos para o sacramento da Confissão, quando os relatos de um fiel indicam a necessidade de uma ajuda especializada em questões de saúde mental. 

Não basta, porém, que essa atenção ocorra apenas no confessionário, razão pela qual algumas paróquias têm investido em formas para melhor acolher as pessoas, debater o tema da saúde mental e encorajar que as pessoas busquem por ajuda especializada.

“Quando a Igreja se posiciona, isso traz um alívio para o fiel”, afirma Aline Rodrigues, que implementou na Paróquia Santa Cândida, na Região Ipiranga, um curso de sete semanas chamado Capacitação Psicológica para Mulheres. O curso combinava conceitos psicológicos com elementos bíblicos para apoiar as participantes.

Raquel trabalha no projeto itinerante Saúde Mental e Bem-estar para Todos, realizado pelo Espaço Buon Vivere e apoiado pelo Vicariato Episcopal para a Pastoral da Saúde e dos Enfermos na Arquidiocese de São Paulo e a Pastoral da Saúde do Regional Sul 1 da CNBB. Esta rede oferece às comunidades atendimentos psicoterápicos, psiquiátricos e serviços nas áreas de neuropsicopedagogia, fisioterapia, nutrição, além de terapias integrativas e complementares em saúde, como aromaterapia e acupuntura auricular. Além disso, a iniciativa envolve palestras e oficinas sobre saúde mental, prevenção de doenças mentais e reflexões sobre temas como a valorização da vida e prevenção ao suicídio.

40 anos ajudando a salvar vidas

O Santuário São Judas Tadeu, na Região Ipiranga, é um dos pioneiros em ações pastorais em prol da saúde mental no Brasil. Em agosto, o Serviço Voluntário de Psicologia completa 40 anos, em um trabalho iniciado sob a orientação do Padre José Felipe Dalcegio, SCJ. Hoje, o grupo conta com 26 psicólogos que orientam cerca de 80 pacientes, tanto presencialmente quanto on-line, a baixo custo, e com valores revertidos em prol do Santuário.

“O Santuário São Judas tem três pilares muito fortes: a Confissão, a Pastoral da Escuta e o Serviço de Psicologia. Quando os padres reconhecem a necessidade de um acompanhamento mais profundo, encaminham a pessoa para nós, e juntos colaboramos para o restabelecimento completo do fiel”, detalha Mariangela Mantovani, fundadora do movimento.

A família Fratoni é uma das que dá testemunho do êxito do projeto. Shirlei e Marcelo Fratoni, casados há 25 anos, são pais de Laura, 21, e Enzo, 15. O casal ficou separado por um ano, até que começou a participar dos encontros do projeto, o que ajudou a reatar o casamento.

“O acompanhamento mudou a maneira como olhamos, primeiro para nós mesmos e, depois, para o outro, com mais cuidado. Assumimos nossos problemas pessoais sem culpar o outro. Aprendemos a nos conhecer melhor e a oferecer sempre o nosso melhor”, testemunha Shirlei, que ao lado do esposo hoje coordena a Pastoral Familiar paroquial.

CONHEÇA MAIS AS INICIATIVAS:

Projeto Saúde Mental e Bem-estar para Todos – @projetosaudementalebemestar
Capacitação Psicológica para Mulheres – @alinerodrigues.ss
Serviço Voluntário de Psicologia – @saojudastadeusp

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