Diego Klautau: ‘O ensino religioso confessional deve alargar a compreensão sobre a presença da religião nas sociedades’

A recente edição do jornal O SÃO PAULO (ed. 3389) apresenta a reportagem “Ensino da religião na escola: um bem para a humanidade”, na qual se reflete sobre o quanto o ensino religioso é fundamental para a formação integral dos estudantes. Um dos que falam sobre o tema é Diego Genu Klautau, Doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP e professor do Colégio Catamarã e do Centro Universitário FEI. Leia a seguir a íntegra da entrevista.

Foto: Arquivo pessoal

Em maio de 2009, a Congregação para a Educação Católica publicou uma carta circular sobre o ensino da religião na escola. Em um dos trechos se aponta que “sem esta disciplina, os alunos estariam privados de um elemento essencial para a sua formação e desenvolvimento pessoal, que os ajude a atingir uma harmonia vital entre a fé e a cultura”. A partir da experiência do senhor, quais são as principais contribuições que o ensino da religião na escola traz para o desenvolvimento integral dos estudantes?

Em primeiro lugar, o ensino religioso permite uma abordagem ao fenômeno como um objeto que possui especificidades próprias, exigindo uma metodologia adequada para ele. Em outras palavras, a religião não é um sintoma das estruturas psicológicas ou sociológicas da humanidade, mas uma realidade em si, cujo estudo deve ser tratado de maneira independente das disciplinas de história, filosofia ou sociologia, ainda que apresente interseccionalidades com tais áreas.

Em segundo lugar, o ensino religioso não deve ser uma catequese, ou seja, uma preparação para os sacramentos e para a formação básica doutrinal. É nisso que consiste a declaração da Congregação para a Educação Católica sobre harmonia entre fé e cultura. O ensino religioso confessional deve alargar a compreensão do estudante sobre a presença da religião nas sociedades, em seus produtos culturais, em seus costumes, em sua literatura e arte, em sua política e economia. Essa interação entre teologia e ciências, sem se concentrar exclusivamente em uma delas, é a marca de um ensino religioso que privilegie a evidenciação da inteligência da fé operando na inculturação e na constituição de uma civilização.

Em relação à dinâmica das aulas de ensino religioso, de quais instrumentais o professor pode se valer para não apresentar apenas uma aula expositiva e teórica, e para que desperte o interesse e a atenção dos estudantes?

De toda produção humana que de alguma forma interaja com a temática religiosa. Seja por filmes, livros, letras de músicas e séries de streamings, seja por declarações políticas, sociais ou éticas de agentes públicos, esses instrumentais podem ser utilizados como forma de aproximação do fenômeno religioso ao cotidiano do estudante.

No curso de especialização sobre Teologia e Ensino Religioso, promovido pelo Vicariato da Educação, o senhor discute as relações entre Tolkien, religião e cultura pop. De que maneira a utilização ou menção de produções artísticas como músicas, poemas, best sellers e filmes apreciados pelas novas gerações ajuda a tornar a aula de ensino religioso mais dinâmica? Pode dar exemplos de como isso colabora nas reflexões em sala e na fixação de valores e conceitos por parte dos estudantes ao longo do tempo?

Como desdobramento desses dois princípios do ensino religioso confessional, isto é, a busca pela interdisciplinaridade escolar e a interação entre fé e cultura, o fenômeno da cultura pop é um lócus privilegiado para a investigação da permeabilidade da religião na sociedade, seja pela presença de elementos virtuosos ou por meio da análise de apropriações ideológicas e deturpadas. No caso de Tolkien em particular, essas demonstrações de princípios se tornam mais fáceis por três motivos. Primeiro, a biografia de Tolkien se tona uma prova inconteste de sua adesão à fé católica dentro de seu contexto histórico, a Inglaterra do século XX, o que pode ser detectado em suas produções acadêmicas e cartas pessoais. Em segundo lugar, os elementos que constituíram tanto sua obra literária – mundialmente famosa – quanto suas elaborações teóricas – menos conhecidas – são ricos em conteúdos acadêmicos sobre linguagem, antropologia, ciência da religião, filosofia e história. Por fim, a qualidade de sua obra literária, tanto artística quanto moral, e a impressionante formação de uma cultura tolkienista que atrai milhões de jovens de todo o mundo, de diferentes nacionalidades, credos e posições políticas.

Embora a oferta de ensino religioso na escola pública de ensino fundamental esteja previsto no Art. 33 da LDB, um levantamento feito em 2020 pelo Vicariato da Educação da Arquidiocese de São Paulo, antes do começo da pandemia, mostrou que efetivamente não há a oferta de ensino religioso em escolas públicas. Em um cenário em que essa oferta do ensino religioso efetivamente aconteça um dia, quais devem ser as preocupações centrais no projeto político pedagógico da escola a fim de essa disciplina “renda os frutos” esperados?

É fundamental o apoio da comunidade escolar, tanto dos pais e alunos quanto do corpo diretivo e dos professores da unidade de ensino. Somente com esse embasamento é possível quaisquer realizações na escola pública. A efetivação do ensino religioso público é um ato político e deve ser executado sem perder essa realidade de vista.

A já referida carta circular da Congregação para a Educação Católica apresenta a preocupação quanto a um possível “relativismo ou indiferentismo religioso se o ensino da religião estiver limitado a uma exposição das várias religiões de modo comparativo e ‘neutro’”. Diante disso, efetivamente é possível se falar em aula de ensino religioso que não aborde os detalhes práticos e a dimensão transcendental de uma religião?

Do ponto de vista da Ciência da Religião, uma área acadêmica consolidada no Brasil e no mundo, é possível um ensino religioso não confessional, pois existem teorias e metodologias propostas para isso. Contudo, o ponto ao qual a Congregação para Educação Católica se refere é uma proposta de ensino religioso confessional como resultado da harmonia entre razão e fé, entre igreja e sociedade, entre teologia e ciências. No fundo, a tensão sobre qual é a razão última que conduz o ensino religioso entre, de um lado, os pressupostos supostamente neutros da Ciência da Religião e das Ciências Humanas (história, filosofia, sociologia) e, de outro lado as premissas de fé da Teologia, é a disputa acerca da autoridade que define a explicação e investigação do fenômeno religioso. Em outras palavras, a disputa evidente é se a epistemologia que estrutura o ensino religioso parte da autoridade do Estado e de seus peritos acadêmicos ou se sua origem é a Igreja com sua Tradição e seu Magistério. Obviamente, é possível uma articulação pacífica entre esses setores, uma postura que privilegie tanto a fidelidade ao Bem, ao Belo e ao Verdadeiro – e especificamente ao Evangelho – e que, portanto, não se submeta a esse indiferentismo religioso e a esse relativismo, quanto uma abertura dialogal aos demais componentes de uma sociedade plural e de um Estado laico, procurando uma superação de um enclausuramento sectário de teólogos que falam de maneira proselitista, solipsista e temerosa apenas para os já convertidos.

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