Imigrantes e refugiados contam com projetos da USP para tentar uma nova vida no Brasil

Grupos de professores e alunos da Universidade oferecem aulas de português, orientação jurídica e atendimento psicológico

Foto: Danielle Camara/FFLCH

Gisela e Miguel Castellano chegaram à cidade de São Paulo em junho de 2015. Com uma mala de roupas e o dinheiro que sobrara da venda da casa e do carro após a compra das passagens, o casal iniciava, aos 63 anos de idade, uma vida nova, longe da crise que crescia em seu país, a Venezuela. Até então, os aposentados nunca tinham saído da região caribenha. No aeroporto de Guarulhos, descobriram dois daqueles que seriam os principais desafios da mudança para solos brasileiros: o inverno paulistano e a dificuldade de comunicação. 

Alunos no Curso de Português para Estrangeiros do Centro Interdepartamental de Línguas (CIL) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Gisela e Miguel contam que, apesar de ser próximo do espanhol, o português é um grande desafio para quem vem de fora. No curso do CIL, a língua é contextualizada com a cultura brasileira e com as necessidades dos imigrantes e refugiados, o que favorece o aprendizado. Segundo Miguel, o verdadeiro problema é se comunicar. “Nós já tínhamos estudado em outros lugares, mas não era o tipo de aula em que conseguíamos aprender, porque estavam muito focados na gramática. A nossa professora sabe que o problema não é esse”, diz. 

A USP também oferece outros serviços gratuitos voltados para a garantia de direitos para imigrantes e refugiados. Entre eles, o Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes (Promigra), da Faculdade de Direito (FD), fornece orientação jurídica a estrangeiros que não podem arcar com os custos de um advogado. Já o Grupo Veredas, do Instituto de Psicologia (IP), faz acolhimento psicológico com crianças, adolescentes e adultos que têm experiência de migração e refúgio. As atividades estão funcionando de forma híbrida e se preparam para atender à projeção de crescimento da demanda no contexto pós-pandêmico.

Primeiros passos: regularização

Assim como o casal de venezuelanos, hoje existem cerca de 1,3 milhão de imigrantes estrangeiros residindo no Brasil, segundo dados do Observatório das Migrações Internacionais, o OBMigra. Destes, cerca de 54 mil são considerados refugiados, termo que, segundo Victor Del Vecchio, mestrando em Direito Internacional, graduado em Direito pela FD e ex-coordenador do Promigra, refere-se às pessoas que precisam deixar seu país de origem devido a situações extremas, como perseguição política, religiosa e violação generalizada de direitos humanos, caso de Gisela e Miguel. 

Del Vecchio explica que, ao chegar ao Brasil, essas pessoas precisam passar por um processo de regularização de sua situação migratória. “A documentação vai permitir que ela tenha o pleno exercício dos direitos civis, o que vai desde acessar uma grande gama de serviços públicos até questões de ordem privada, como poder abrir contas em bancos.”

O advogado ressalta que, apesar de haver um esforço do sistema brasileiro em agilizar a regularização, os estrangeiros enfrentam entraves, como o desconhecimento sobre a burocracia local. Em razão do fechamento das fronteiras nacionais entre abril e agosto de 2020, a demanda por esses serviços se tornou mais latente. 

“No início da pandemia, o Brasil manteve suas fronteiras fechadas para a entrada de imigrantes. É importante que a gente saiba o que isso significa, que muitas pessoas deram um jeito de entrar. Quem podia esperar adiou seus planos, mas quem não podia entrou de forma irregular. Com isso, temos uma diminuição do fluxo regular e aumento do fluxo irregular”, conta.

Para Del Vecchio, esse cenário traz consequências para o momento atual: hoje, há o aumento do fluxo regular, como uma compensação daquelas pessoas que puderam aguardar a reabertura das fronteiras, e também o aumento da demanda pela regularização e de outros serviços por imigrantes que ingressaram no País de forma irregular. 

“As pessoas que entraram de forma irregular correm maiores riscos, acabam gastando mais recursos para atravessar a fronteira e, consequentemente, têm menos recursos para se estabelecer no Brasil. Além da situação de documentação, são pessoas, em geral, mais vulneráveis.”

Foi para atender a essa demanda de regularização de imigrantes e refugiados que os alunos da FD criaram o Promigra, com a orientação de professores da USP. Vitor Bastos, membro do grupo de atendimento do projeto, explica que o serviço consiste, principalmente, em orientar essas pessoas sobre o funcionamento do sistema brasileiro, ajudando na resolução de questões que podem ou não demandar a abertura de processos na justiça. “Nesse período da pandemia, recebemos muitas demandas de regularização migratória, relacionadas, por exemplo, ao atendimento da polícia federal, principalmente à dificuldade de agendamento para acessar os serviços.” 

O Promigra também oferece assistência em várias áreas, como do direito trabalhista e de família. Bastos conta que o público vai desde pessoas que estão planejando migrar para o Brasil ou que acabaram de chegar e precisam de orientação sobre os primeiros passos, até pessoas que já estão estabelecidas há mais tempo, mas que têm pendências ou dúvidas sobre o funcionamento da burocracia local. 

Segundo Bastos, o objetivo principal é “suprir as lacunas, contribuindo naquilo que há de deficiente dentro do que a rede de atendimento a essa população já oferece”. Por essa razão, uma das ações do serviço de extensão é buscar públicos que estejam distantes das instituições tradicionais. 

A iniciativa se dá por meio do serviço de atendimento itinerante e de solicitações diretas, feitas pelos formulários on-line. Em parceria com a rede de atendimento a imigrantes e refugiados do município de São Paulo, o Promigra também faz plantões no Centro de Integração e Cidadania do Imigrante e, em casos que demandam a abertura de processos judiciais, o projeto é parceiro de instituições que oferecem o serviço de advocacia gratuito.    

Aprender a falar português

No caso de Gisela e Miguel, a questão da regulamentação foi resolvida quando ainda estavam na Venezuela. Pela Embaixada Brasileira, eles conseguiram dar entrada no pedido de refúgio antes de chegar ao País, um procedimento que, segundo Victor Del Vecchio, não é incomum. Por outro lado, o casal teve dificuldades em encontrar um lugar para aprender o português. “Imediatamente quando chegamos, fomos colocados em um curso em uma igreja que ficava perto da nossa casa. Só que o curso era de alfabetização, e não de português”, Miguel relata. 

Gisela, que é psicóloga e se aposentou como coordenadora de recursos humanos na Universidade Centro Ocidental Lisandro Alvarado, conta com graça que, depois de um tempo, foram expulsos do curso. “Ficamos lá por dois meses, até que a professora disse: ‘Vocês já estão alfabetizados, não vão aprender muita coisa. Tem pessoas que não sabem ler e que querem entrar aqui’”.

Depois do mal-entendido, o casal começou a procurar outros cursos. Em um anúncio de jornal, descobriram uma instituição que oferecia ensino do idioma. O problema é que, mesmo com as aulas, a dificuldade continuava. Gisela lembra que “eram aulas gratuitas e muito boas, mas não é o tipo de aula que conseguimos na Universidade (se referindo às aulas ofertadas no CIL/USP). Ele [Miguel], que tem mais facilidade, conseguiu aprender. Mas eu tinha muitos problemas”. Para eles, o ensino estava muito focado em aspectos formais do idioma, como as regras gramaticais, o que tirava a motivação de quem precisa aprender rapidamente. Faltava espaço para interagir com outros brasileiros ou pessoas com conhecimento da língua. 

Para facilitar o aprendizado da língua, a professora Paola Mandalá, responsável pelo curso de Português do Centro de Línguas da FFLCH, conta que as aulas ministradas na USP são formuladas com foco nos alunos e não em questões teóricas. “Temos a percepção das aulas como momentos para troca de ensinamentos. Nas aulas de português para imigrantes, portanto, a interculturalidade predomina e norteia os temas, os quais são os condutores e motivadores dos elementos linguísticos, e não o contrário.”

A professora explica que o tipo de aula, os temas dos materiais didáticos e o grau de exigência são formulados de acordo com o contexto da turma. Assim, na turma dos imigrantes, há espaço para questões acerca da adaptação dessas pessoas. 

“Quando há a demanda, fazemos aulas, por exemplo, para auxiliá-los a diferenciar e tirar documentos, orientá-los na abertura de conta bancária ou empresa MEI; ou também quando, nos níveis mais avançados, tratamos de geografia, para ter noção do território ou fazer uma viagem curta de fim de semana, ou de história, para que compreendam os processos que forjaram a sociedade brasileira como tal.” 

O curso é muito procurado por pessoas que desejam obter a certificação para comprovação de proficiência na Polícia Federal, necessária para a naturalização. Paola conta que a demanda é grande e que, nos últimos anos, o CIL tem estudado a possibilidade de contratação de novos professores para o atendimento de mais alunos. No segundo semestre de 2022, serão oferecidas duas turmas, de níveis básico e intermediário, uma presencial e a outra em modalidade on-line, para aqueles que têm dificuldades para chegar ao campus ou moram em outras cidades. As inscrições e o teste de nivelamento são feitos pela internet e estarão disponíveis no Sistema Apolo até o início das aulas, em agosto.  

Atendimento psicológico e demandas não materiais 

A USP também oferece o serviço de atendimento psicológico e psicanalítico gratuito para imigrantes e refugiados, por meio do Grupo Veredas, do Instituto de Psicologia. Diferente das demandas de regularização e de comunicação, Gabriel Binkowski, docente do IP e membro do Veredas, explica que a demanda por esse tipo de atendimento pode acontecer ao longo de todo o processo de adaptação do imigrante, e a sua duração depende da experiência de cada indivíduo. 

O psicólogo conta que, muitas vezes, as pessoas recorrem ao atendimento em função de questões objetivas, como insônia, dificuldade em ter relações ou trabalhar. Ele explica que, apesar de não serem sintomas explicitamente ligados à migração, ao longo do tratamento, essas demandas apontam para experiências que são comuns a esse contexto. 

“Antes de chegar ao Brasil, muitas dessas pessoas passam por abusos, são perseguidas, sofrem traumas. No momento da chegada migratória, essas pessoas têm que fazer de tudo para comer, trabalhar, construir um novo lar e, para isso, é demandado um endurecimento. Mas, por outro lado, a vida psíquica bate à porta. Mais cedo ou mais tarde, às vezes quando as coisas estão calmas, começam a surgir sintomas.” 

Na clínica do Veredas, os psicólogos oferecem um espaço de escuta para que essas pessoas possam identificar e ressignificar a origem desses conflitos, algo que nem sempre é possível no cotidiano. No diálogo, Binkowski comenta que os atendidos costumam compartilhar a experiência de desterritorialização, ou seja, a sensação de não pertencer a nenhum lugar. 

“É a situação de se dar conta de não ter mais para onde voltar, ou que esse lugar onde você nasceu é um lugar que não te quer, que não tem futuro. Claro que são em vários graus, mas, de forma geral, há essa percepção de não ter mais futuro com a sua antiga vida, de ter que abandonar algo e precisar lidar com esse abandono”, explica. 

De acordo com o professor, após chegar ao Brasil, muitos imigrantes passam a enfrentar violências que, antes da imigração, eram desconhecidas. 

“Há, por exemplo, a descoberta do racismo à brasileira pelos jovens de países africanos. Eles são maltratados em alguns lugares e não entendem por que isso está acontecendo. É uma experiência muito dolorosa, porque, por alguns anos, o Brasil cultivou a imagem de ser um lugar acolhedor, um povo querido, o que fez muitos deles virem para cá. Com o tempo, essas questões geram uma grande decepção”, destaca o professor.

Para lidar com essas variáveis, Binkowski diz que o atendimento do Grupo Veredas é feito a partir de um diagnóstico sociopolítico, levando em consideração que o sofrimento está associado ao contexto social do indivíduo. A princípio, o serviço era oferecido somente dentro de instituições parceiras, o que trazia dificuldades para o estabelecimento de uma regularidade nos atendimentos. Com a pandemia, o projeto também passou a receber demandas diretas, disponibilizando sessões virtuais, que podem acontecer em português, francês, inglês ou espanhol. 

Trabalho e qualificação

Gisela e Miguel Castellano não gostam de falar sobre o país que deixaram para trás. Miguel conta que “a Venezuela foi, desde a colônia, um país que recebeu imigrantes, e nunca um país de emigrantes. Conhecemos alguns países do Caribe, mas nunca sonhamos em vir para o sul e, muito menos, para o Brasil”. 

A situação de crise dividiu a família do casal. O filho foi para o Equador, alguns parentes estão na Argentina, República Dominicana, Panamá, Estados Unidos, Chile e, a neta, está em Portugal. Na Venezuela, ficou a irmã de Gisela e duas sobrinhas. Uma delas sofre de problemas de saúde e demanda ajuda financeira de toda a família para custear a compra de equipamentos básicos em um contexto de crise de desabastecimento.  

Para conseguir se manter no Brasil e enviar dinheiro para a sobrinha, o casal está em busca de emprego. Eles narram que há uma grande dificuldade em validar os estudos feitos fora do País, deixando-os com oportunidades de mão de obra menos qualificada e maior aptidão física. Algo que se torna um desafio em razão da idade. 

Victor Del Vecchio, do Promigra, lembra que a inserção no mercado de trabalho por imigrantes e refugiados levanta diversos problemas. “Existe desde o desconhecimento no momento da contratação, de o contratante achar que, por ser imigrante, a pessoa não tem o direito de trabalhar no Brasil de maneira regular, como patrões que se aproveitam do desconhecimento das práticas culturais e dos direitos trabalhistas brasileiros para explorar esses trabalhadores.” 

Ele destaca o impasse sobre o reconhecimento das qualificações dos estrangeiros. “Temos um gigantesco problema com revalidação de diplomas, tanto de ensino médio quanto, principalmente, de cursos superiores. Pensando em um profissional que chega a ser contratado, vemos um cenário de subvalorização dessa mão de obra. Claro que existem exceções, mas entre essas pessoas há uma maior incidência do aproveitamento ilícito da condição de imigrantes para a violação de direitos e o não reconhecimento de capacidades.”

Sobre a questão da revalidação, o advogado sugere que a USP poderia ter papel mais ativo. “A Universidade poderia ter um papel muito interessante de desburocratizar, por exemplo, o acesso para a revalidação de diplomas e ainda de facilitar o ingresso dessas pessoas no ensino superior, assim como muitas outras universidades do País já fazem notadamente.” 

Enquanto não é possível trabalhar em suas áreas, Gisela e Miguel aproveitam a oportunidade de estudar dentro da Universidade. “Temos os dois primeiros certificados de português, que são os que precisam para a polícia. Mas queremos continuar. Eu gostei muito do curso e, se tiver outro, eu quero fazer também”, afirma a psicóloga. E Miguel completa: “Eu já vi que também tem os de outras línguas, como russo e inglês. Depois dos cursos de português, vamos ver se conseguimos nos inscrever em outros”.

Fonte: Jornal da USP

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