Mais de 30 entidades assinam manifesto contra mudança na concessão de visto e de residência transitória a afegãos

Caritas Arquidiocesana de São Paulo e a Missão Paz estão entre as instituições que assinam a nota pública

Foto: Missão Paz/Arquivo

A Caritas Arquidiocesana de São Paulo (CASP) é uma das 35 entidades da sociedade civil a assinar manifesto que demonstra preocupação desses organismos com a publicação da Portaria Interminesterial 42/2023, na edição de 26 de setembro do Diário Oficial da União (D.O.U.).

A portaria modifica a política de concessão de vistos e residência transitória a nacionais afegãos, cujo país enfrenta grave crise humanitária desde que o grupo Talibã voltou ao poder em agosto de 2021.

Trecho do manifesto reforça que “a nova Portaria, em seu artigo 3º, condiciona a concessão de visto temporário à existência de capacidade de abrigamento por organizações da sociedade civil com acordo de cooperação com o governo. Isso, além de atacar diretamente o princípio da acolhida humanitária disposto na Lei de Migração brasileira e o direito de buscar proteção internacional no marco da Lei de Refúgio, coloca as pessoas afegãs em uma posição ainda mais vulnerável, dependendo da disponibilidade e capacidade dessas organizações”.

As instituições ainda reforçam que “é de domínio público que restrições de entrada não evitam que as pessoas deixem de sair de seus países em busca de salvar suas vidas e de suas famílias, mas, sim, as expõem ainda mais a situações de exploração pelas redes de contrabando de migrantes”.

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o secretário nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, salientou que a mudança na política visa “aprimorar o acolhimento aos afegãos, que ainda não têm base sólida no Brasil – como é o caso de venezuelanos e angolanos – e enfrentam ainda uma barreira linguística”.

À Folha, o secretário também pontuou que muitos afegãos chegam aqui e depois emigram para os outros países, como os Estados Unidos. Mas, no entender das entidades que assinaram o manifesto, elaborado pela Caritas Arquidiocesana ao lado da Missão Paz e da Conectas, a mudança na política “certamente privilegiará grupos e pessoas com maior capital social e financeiro e aumentará o risco de facilitação da emissão de vistos e apoio mediante a pagamentos e favorecimento de rotas irregulares”.

Leia a íntegra do manifesto abaixo:

São Paulo, 26 de setembro de 2023

Nota Pública sobre a Portaria Interministerial que dispõe sobre a concessão de vistos e autorização de residência humanitários para pessoas afetadas pela situação no Afeganistão

As organizações da sociedade civil abaixo-assinadas vêm publicamente manifestar sua preocupação com a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 42, de 22 de setembro de 2023, publicada hoje (26/09/2023) no Diário Oficial da União. Menos de uma semana após o anúncio feito pela Secretaria Nacional de Justiça (SENAJUS) sobre a realização da segunda Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (COMIGRAR) em 2024, dentro de um contexto promissor instituído pelo governo Lula para a construção de uma Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, fomos surpreendidas pela edição da Portaria ora mencionada, uma vez que ela restringe consideravelmente o direito de migrar e de buscar proteção internacional da população afetada por uma das principais emergências mundiais: a situação de grave perseguição, violência e instabilidade no Afeganistão, indo em sentido completamente oposto a medidas importantes adotadas pelo atual governo sobre o tema.

A nova Portaria, em seu artigo 3º, condiciona a concessão de visto temporário à existência de capacidade de abrigamento por organizações da sociedade civil com acordo de cooperação com o governo. Isso, além de atacar diretamente o princípio da acolhida humanitária disposto na Lei de Migração brasileira e o direito de buscar proteção internacional no marco da Lei de Refúgio, coloca as pessoas afegãs em uma posição ainda mais vulnerável, dependendo da disponibilidade e capacidade dessas organizações. Além disso, é de domínio público que restrições de entrada não evitam que as pessoas deixem de sair de seus países em busca de salvar suas vidas e de suas famílias, mas sim as expõem ainda mais a situações de exploração pelas redes de contrabando de migrantes. Esse modelo certamente privilegiará grupos e pessoas com maior capital social e financeiro e aumentará o risco de facilitação da emissão de vistos e apoio mediante a pagamentos e favorecimento de rotas irregulares.

Como inovação, o mesmo artigo 3º da Portaria prevê que o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) enviará ao Ministério das Relações Exteriores lista nominal das pessoas que serão entrevistadas, com base no resultado do edital de chamamento público de organizações da sociedade civil que se propuserem a abrigá-las. Isto é, a sociedade civil e o MJSP passam a participar do trâmite de solicitação do visto humanitário, porém, não há detalhamento sobre como se dará o fluxo criado. Sabe-se que existem milhares de afegãos aguardando a reabertura de novas datas para agendamento de entrevistas nas Embaixadas, e a criação de novas etapas para o pedido e concessão do visto humanitário tornará o processo ainda mais dificultoso e excludente.

Além disso, o parágrafo 1º do artigo 2º da nova Portaria também apresenta um retrocesso em relação à anterior, já que determina que o visto será concedido exclusivamente pelas Embaixadas brasileiras em Teerã e Islamabad, reduzindo potencialmente a capacidade para a análise dos pedidos e aumentando a fila de solicitantes, uma vez que anteriormente as Embaixadas em Ancara, Moscou, Doha e Abu Dhabi também estavam habilitadas a prestar esse serviço. Não parece razoável a retirada da habilitação da Embaixada em Ancara de conceder o visto humanitário, por exemplo, já que seria a terceira Embaixada mais procurada pela população afegã que busca pelo visto para acolhida humanitária. Adicionalmente, a Turquia não tem se mostrado um país acolhedor para nacionais do Afeganistão, além de termos notícias de já ter deportado milhares de pessoas afegãs, ignorando a situação humanitária.

Cabe ressaltar ainda que a Portaria não reserva nenhum artigo para tratar sobre a necessária facilitação da reunião familiar para pessoas afegãs que já estejam no Brasil, tema de grande importância que precisa ser encaminhado com urgência, para evitar a separação das famílias por tempo desarrazoado. Também levanta preocupação o fato de que a desistência ou renúncia tácitas ou automáticas, conforme consta no art. 10º, restringem o poder de escolha das pessoas em relação aos seus status legais.

Infelizmente, a tentativa de impor barreiras à migração de pessoas afegãs não é uma novidade. Apesar de na Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 24, de 03 de setembro de 2021, publicada na gestão Bolsonaro, não constar previsão de apoio financeiro de organizações da sociedade civil a solicitantes do visto humanitário, algumas Embaixadas brasileiras na região aplicaram esse requisito inicialmente, divulgando em seus sites listas com exigências de comprovação desde apoio com hospedagem a custos de revalidação de diplomas. As organizações e a Defensoria Pública da União (DPU) reagiram prontamente, alegando que não só as exigências eram ilegais, como impediriam na prática a obtenção do visto por afegãos que buscam proteção contra o regime do Talibã. Na ocasião, o Itamaraty voltou atrás e respondeu que passaria orientações às Embaixadas de que as exigências não deveriam afetar pedidos individuais 1 .

Posteriormente, novos problemas apareceram durante a última gestão, como a suspensão de agendamentos de entrevistas nas Embaixadas, a morosidade no processo de emissão dos vistos, indeferimentos de solicitações sem justificativa fundamentada e negativas de emissão de documento de viagem emergencial, os quais foram criticados pelas organizações, que continuaram em contato com o Itamaraty para reivindicar melhorias 2 . Porém, mesmo diante de tantas dificuldades, faz-se necessário reconhecer que em nenhuma dessas oportunidades houve uma alteração da Portaria, de forma tão restritiva, como a que tomamos conhecimento ontem.

Esperamos que o Ministério da Justiça e de Segurança Pública e o Ministério das Relações Exteriores estejam abertos ao diálogo com a sociedade civil e possam repensar os critérios presentes na Portaria nº 42/2023, para adequá-los aos princípios de direitos humanos, tão reverenciados nas Leis de Migração e Refúgio brasileiras e que têm guiado o governo federal até o momento em sua atuação sobre o tema. Solicitamos especialmente que o disposto no artigo 3º seja rapidamente revogado e que o poder público assuma sua responsabilidade primordial diante do acolhimento da população migrante e refugiada.

Fonte: Caritas Arquidiocesana de São Paulo

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