Formada na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém, ela foi coeditora da primeira edição da Bíblia de Jerusalém em português, colunista do O SÃO PAULO e professora no Seminário da Arquidiocese de São Paulo. Velório acontecerá na quarta-feira, 25, na Paróquia São Domingos, no bairro de Perdizes

“Sempre fui uma pessoa estudiosa e refletiva. A coragem para agir publicamente sempre foi difícil para mim”. Assim Ana Flora Anderson falou sobre si em um artigo para o jornal O SÃO PAULO, publicado em janeiro de 2013. Por quatro décadas, até junho de 2016, a biblista assinou a coluna de “Liturgia e Vida” do semanário arquidiocesano.
Na noite da terça-feira, 24, Ana Flora Anderson faleceu, aos 90 anos, em um hospital onde estava internada na capital paulista, cidade que a norte-americana compartilhou os anos de vida e seus muitos estudos sobre a Palavra de Deus com gerações de sacerdotes, religiosos consagrados e leigos.
O velório de Ana Flora acontece na Paróquia São Domingos (Rua Caiubi, 164, Perdizes), na quarta-feira, 25, das 12h às 16h, com a missa de corpo presente às 14h. Ainda não havia informações sobre o local do sepultamento.
A JOVEM NORTE-AMERICANA QUE AMOU O BRASIL
Florence Mary Anderson nasceu em Nova York, nos Estados Unidos, em 6 de junho de 1935. “Deus me deu o dom de nascer em uma família profundamente católica e sempre frequentei escolas católicas, fazendo a primeira comunhão com 5 anos de idade. Neste ambiente, recebi uma formação religiosa, sem dúvidas nem questionamentos, mas sem muito aprofundamento”, escreveu no já referido artigo.
Na juventude, Florence ingressou em uma universidade católica em seu país e na Ação Católica, a partir da qual, conforme relatou muitas vezes, passou a viver uma fé mais consciente.
Após concluir uma pós-graduação na Universidade de Michigan, ganhou uma bolsa de estudos na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo (USP), chegando ao Brasil em 16 de fevereiro de 1959.
“Na faculdade, tive a sorte de estudar com o professor Sérgio Buarque de Holanda [historiador], e na Juventude Universitária Católica conhecer alguém como Pedro Kalil. Essa experiência e as aulas de Frei Carlos Josaphat [frade dominicano] abriram para mim uma nova visão do mundo e da fé”, recordou.
“Eu senti que as pessoas, sobretudo os jovens daqui, contavam comigo. Que havia um movimento muito bonito se formando. Eles tinham um sonho para o Brasil e me envolveram neste sonho. Então, escrevi para minha mãe dizendo que ia ficar, porque precisava ajudar a construir este sonho”, disse Ana Flora, em uma entrevista concedida ao O SÃO PAULO em 2019.
ESTUDOS EM JERUSALÉM
Ao concluir a pós-graduação na USP, Ana Flora foi convidada a estudar teologia bíblica e, alguns anos depois, ganhou uma bolsa na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa, em Jerusalém, por intermédio do Frei Gilberto Gorgulho, da Ordem dos Pregadores de São Domingos (Dominicanos), e após uma carta de apresentação enviada à referida Escola Bíblica pelo Cardeal Agnelo Rossi, então Arcebispo de São Paulo.
“Os professores eram exegetas críticos, mas de fé profunda e me ajudaram a penetrar no mundo vivo da Palavra de Deus”, contou no artigo de 2013.
NA VOLTA AO BRASIL, O ENSINO DA BÍBLIA NAS COMUNIDADES
Ana Flora retornou ao Brasil na década de 1970, em meio à Ditadura Militar, e encontrando uma Igreja que buscava se adaptar às mudanças estabelecidas no Concílio Vaticano II (1962-1965).
Ao regressar, foi nomeada por Dom Agnelo como a primeira mulher a dar aulas de Teologia no Seminário Central do Estado de São Paulo (SP).
Anos depois, a convite do Cardeal Paulo Evaristo Arns, Arcebispo de São Paulo a partir de 1970, Ana Flora passou a ministrar cursos de formação bíblica para os fiéis nas comunidades da cidade, na companhia do Frei Gilberto Gorgulho. Esta parceria também foi estabelecida para as colunas semanais de “Liturgia e Vida” no O SÃO PAULO e mantida até a morte do Frade, em dezembro de 2012. Ana Flora continuou assinando os textos individualmente até junho de 2016.
“A experiência junto às comunidades mudou novamente minha vida. Eu compreendi que precisava ensinar a Bíblia de uma forma nova, e até mesmo minha metodologia para lecionar na faculdade se transformou”, contou Ana Flora na já referida entrevista de 2019.
“Ao ouvir o povo pregar, eu comecei a ver o Espírito Santo penetrar em nossa fé e abrir nossos olhos para aspectos novos da Palavra”, escreveu em 2013.
“Dom Paulo Evaristo Arns e Frei Gorgulho me encorajaram a fazer parte da reação contra as injustiças do governo militar. Participei de missas e cultos ecumênicos em momentos cruciais na Catedral da Sé e marchei em procissões da Igreja da Consolação até a Praça da Sé… mesmo com medo, a fé crescia e marchei até o fim de braços dados com uma grande amiga, tão medrosa quanto eu!”, lembrou naquele mesmo texto.
A PROFESSORA ANA FLORA NO MEIO DO POVO

Em mais de 30 anos no magistério, Ana Flora foi professora de muitos seminaristas, padres e leigos, além de ter sido responsável por cursos bíblicos e palestras em todo o Brasil.
“No início, quando eu lecionava no Seminário Central de São Paulo, recebíamos somente uma ajuda de custo. Só depois quando as Faculdades Associadas Ipiranga (FAI) – hoje Centro Universitário Assunção – foi fundada, comecei a receber salário”, contou em 2019.
Com o tempo, Ana Flora passou a ser convidada para também proferir palestras e conferências em universidades e instituições dos Estados Unidos, ocasiões em que pôde rever os pais.
Ela destacou ter aprendido muito com outros professores com quem conviveu e especialmente com o Frei Carlos Josaphat, mas que seu maior aprendizado sobre a espiritualidade católica veio do convívio com o povo.
‘QUEM NÃO AMA SE PERDE NO CAMINHO DA FÉ’

Ana Flora Anderson foi autora de dezenas de livros, entre eles os comentários dos Evangelhos segundo Mateus, Marcos e Lucas, e do Livro do Apocalipse. A inédita tradução da Bíblia de Jerusalém, em 1981, também é fruto do trabalho de Ana Flora e Frei Gorgulho, com a contribuição de um grupo de biblistas, exegetas e teólogos.
Em 2017, Ana Flora foi contemplada com a Medalha São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, em reconhecimento por seu testemunho missionário.
“A fé é um relacionamento com Deus. Todo verdadeiro relacionamento precisa crescer sempre para se aprofundar, senão começa a se enfraquecer. Frei Gorgulho sempre citava São João: ‘Deus é amor e todo aquele que ama, conhece a Deus’. Ter fé significa conhecer a Deus. Quem não ama os outros se perde no caminho da fé”, escreveu no artigo publicado em 2013.
(Edição de texto, Daniel Gomes, a partir da reportagem “Uma vida dedicada à Palavra: Ana Flora Anderson”, de autoria da jornalista Nayá Fernandes, publicada no O SÃO PAULO em 27/02/2019, e de artigo publicado na edição de 29/01/2013 do semanário arquidiocesano de autoria da própria Ana Flora)
Testemunho encorajador e consolador de fé e amor. Obrigada, Ana Flora! Obrigada pela reportagem sobre ela!
Ana Flora foi, para nós, mais do que uma amiga — foi parte da nossa família do coração. Sua sabedoria, generosidade e fé marcaram profundamente nossas vidas. Guardaremos com carinho cada conversa, cada gesto de amor e cada ensinamento que ela nos deixou. Que o Eterno acolha sua alma com ternura e que sua memória siga viva em todos que tiveram o privilégio de conhecê-la. Com gratidão e saudade — Família Cidre
Grande perda para o mundo acadêmico! Ana Flora foi uma mulher de fé e vivência profunda da Palavra de Deus, que transmitiu durante muitos anos, há várias gerações.
Uma mulher muito além do seu tempo! Que contemple face a face, tudo que nos ensinou com alegria, profundidade e muito sabedoria.
Flora representava o mais puro reflexo do amor de Deus — doce, acolhedora e cheia de fé. Seu amor me alcançou de forma profunda, e amá-la é um privilégio que levarei comigo para sempre.