Os caminhos possíveis para minimizar e evitar desastres naturais

Bom planejamento urbano e eficaz gestão municipal, incluindo a participação de diferentes atores sociais, podem reduzir a incidência de tragédias como as ocorridas no Litoral Norte paulista

José Mario Brasiliense Carneiro* e Eder Brito**

Foto: Agência Brasil

O desenvolvimento urbano desordenado e a ocupação de áreas de risco é um problema em várias cidades brasileiras. De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Aler- tas de Desastres Naturais (Cemaden), dos 5.568 municípios do País, 2.120 são considerados vulneráveis a desastres climáticos relacionados a chuvas torrenciais.

A maior parte das cidades monitoradas pelo Cemaden fica nas proximidades da costa atlântica, onde se encontram a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira, mais sujeitas à chuva de relevo e aos desastres naturais.

O tema que se coloca após os desastres, como o ocorrido durante o carnaval no Litoral Norte paulista, especialmente na cidade de São Sebastião, é se é possível a prevenção a tal risco por meio de instrumentos de planejamento urbano e de gestão pública.

PLANO DIRETOR: UM INSTRUMENTO FUNDAMENTAL

A questão central e muito complexa diante do fato refere-se ao controle da ocupação de áreas inadequadas para habitação. O principal instrumento para tanto é o Plano Diretor, regulado pelo Estatuto da Cidade, promulgado pela Lei 10.257/2001 para regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição federal (CF).

O artigo 182 da CF determina que a política de desenvolvimento urbano deve ser executada pelo Poder Público Municipal. A Constituição também define que o Plano Diretor é obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes.

São Sebastião tem pouco mais de 90 mil habitantes e possui um Plano Diretor estabelecido pela Lei Complementar 263, de 2021. O inciso XXI do Art. 3o da referida lei municipal traz a importante definição sobre o que é “passivo ambiental”. Trata-se do “conjunto de danos ambientais causados por pessoas físicas ou jurídicas, sobre glebas ou lotes, rios, lagos, praias, costões ou mares, sobre as quais recai a obrigação da reparação física, biológica, social, cultural e financeira”.

No inciso XXV, define-se outro conceito fundamental: as “restrições ambientais”. São as “caracterísiticas naturais específicas de uma determinada área que limitam sua plena utilização sobre a qual pesa algum tipo de enquadramento de proteção ou proibição de uso na legislação ambiental”.

O Art. 6o, inciso X, afirma a necessidade do “fortalecimento do setor público e valorização das funções de planejamento e controle”. No mesmo artigo, inciso XII, se define a “regulação pública sobre o uso da terra por meio da utilização de instrumento de controle sobre o uso e ocupação do território”. E no inciso XIII está aquilo que parece ser a questão central do problema: a responsabilidade dos próprios moradores das áreas de risco e dos cidadãos que possuem casas de praia na região. Há referência explicita à necessidade de uma “gestão democrática, participativa e descentralizada”.

A legislação municipal de São Sebastião, portanto, prevê as situações de risco que ali ocorrem com frequência. Porém, os fatos deste início de ano deixam claro que essa lei não está tendo efeito prático.

Foto: Agência Brasil

OS PARADOXOS DO TURISMO NO LITORAL NORTE

A lei municipal do Plano Diretor também faz menção à atividade econômica que se desenvolve no entorno do turismo.

No artigo 6o, inciso do XIV, há referência de que a organização do território deve respeitar as “diferentes características urbanísticas, socioculturais e vocações”, a fim de valorizar a cultura local. Entretanto, no inciso XV fala-se no “fortalecimento do turismo e ecoturismo”. De modo a equilibrar possíveis conflitos, o inciso XVI do mesmo artigo afirma a necessidade de se fortalecer o “papel fiscalizador do poder público”.

Diante da tragédia ocorrida, é possível se chegar à conclusão de que o papel fiscalizador do poder público não ocorreu. Mais do que isso, que a atividade econômica central para a região, o turismo, tem sido, paradoxalmente, tanto um fator de desenvolvimento quanto de retrocesso do ponto de vista da sustentabilidade social e ambiental.

CONFLITOS POLÍTICOS E ECONÔMICOS PELO ESPAÇO URBANO

O caso de São Sebastião não é o primeiro e, infelizmente não será o último. No ano passado, a cidade de Petrópolis (RJ) sofreu brutalmente com as chuvas que deixaram cerca de 238 mortos.

Em apenas um dia, domingo, 20 de março, o temporal matou cinco pessoas, deixou 31 feridos e quatro desaparecidos. O índice de chuva que chegou a 534,4 mm em 24 horas foi o maior da história de Petrópolis. A média esperada de chuva para o mês de março era de 250 mm. Com indicação de alto risco para deslizamentos, a Defesa Civil municipal emitiu alertas para a população, enviados por SMS, TV digital e grupos de mensagens.

O desenrolar dos fatos em Petrópolis e São Sebastião servem de alerta para que se busque evitar os fatores críticos que se repetem. A ocupação irregular de encostas e o desmatamento apontam para a pobreza e a injustiça social como questões estruturais que só podem ser combatidas com políticas consistentes de trabalho e renda.

Ao lado delas, é fundamental o investimento público maciço nas periferias, com políticas de planejamento e controle do desenvolvimento urbano efetivas. Na perspectiva do planejamento urbano integrado e integral, habitação, abastecimento, saneamento, energia, infraestrutura e transporte público devem caminhar de mãos dadas quando se pensa nas populações mais carentes das periferias.

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O FORTALECIMENTO DA AUTONOMIA MUNICIPAL

Após o mais recente evento trágico no Litoral Norte paulista, assistimos à reunião do presidente da República, do governador do estado de São Paulo e do prefeito de São Sebastião para tratar dos desafios da autonomia local e da cooperação federativa. Lado a lado no mesmo palco, alinharam-se e discursaram juntos, estruturando esforços para enfrentar a tragédia.

A aparente integração não esconde, porém, que o prefeito, dependente e frágil, precisou de recursos e consolação dos governos estadual e federal, confirmando a trágica dependência dos governos municipais brasileiros. Atualmente, os municípios do Brasil contam apenas com 15% do total do bolo tributário, e sem recursos financeiros, as gestões municipais não adquirem competências de planejamento e gestão que somente são possíveis com o exercício prático e constante de tarefas fundamentais de ordenamento e controle territorial.

O texto constitucional de 1988 defende o projeto político de se implementar no Brasil a autonomia municipal existente em outras federações do mundo. O fato de no País o município ter sido elevado à condição de ente federativo não pode se manifestar apenas na Lei Orgânica do Município, instrumento que funciona como uma “constituição municipal” e que organiza os assuntos de interesse local de forma peculiar e detalhada.

Esse nível de autonomia política é insuficiente quando não existe autonomia financeira. A maioria dos tributos arrecadados pelos cofres públicos ainda se concentram na União, nos ministérios e no Tesouro Nacional: cerca de 60% vão para Brasília e sobra pouco para os estados e menos ainda para os municípios.

Mesmo no caso de cidades como São Sebastião, que recebem royalties do Estado pela exploração de petróleo, há uma forte dependência das transferências de ICMS do Governo Estadual e do Fundo de Participação dos Municípios oriundos da União.

Infelizmente, não há previsão em nenhum dos textos da reforma tributária em discussão no Congresso Nacional de institutos que apontem para a autonomia financeira municipal. As cidades continuarão tendo seus cofres e sua capacidade de gestão dependentes das transferências e, portanto, dos diversos processos, visíveis e invisíveis, em que se dão as relações político-partidárias.

Há uma outra luta ainda mais silenciosa quando se fala em autonomia municipal nas cidades que estão fora das regiões metropolitanas, como é o caso de São Sebastião. Esses territórios precisam lidar com a dificuldade de preencher seus quadros técnico-administrativos nas prefeituras com profissionais qualificados.

As carreiras do serviço público pagam melhores salários no Governo federal e nos governos estaduais, com estrutura física e presença nas capitais e regiões metropolitanas. Além disso, boa parte dos profissio- nais formados no chamado “Campo de Públicas” é absorvida pelo ter- ceiro setor e pela iniciativa privada, com carreiras que demandam uma boa compreensão da esfera pública e das relações governamentais para condução de seus negócios e missões sociais.

É importante ainda apontar a necessidade de capacitação continuada desses quadros que estão em contato direto com as pessoas, sujeitos à sobrecarga de trabalho causada pela insuficiência de recursos humanos. Não menos importante é a revisão de cargos, carreiras e salários, para que estas funções sejam mais atraentes. Seria necessário, ainda, criar carreiras específicas na estrutura organizacional dos governos de toda área litorânea em temas altamente especializados como geologia, engenharia ambiental, meteorologia, biologia e outros campos do saber prático que devem interagir com o planejamento urbano em perspectiva intersetorial.

Foto: Corpo de Bombeiros São Paulo

UM BOM EXEMPLO DE ENGAJAMENTO DA SOCIEDADE CIVIL

Tragédias como a ocorrida no Litoral Norte paulista também fazem pensar sobre a necessidade de maior consciência cívica e de mudança da cultura política que embasam as estruturas de controle social e participação democrática no Brasil. Políticas públicas não são (e nem devem ser) formuladas e implementadas apenas pelo poder público e pelos governos.

Ao longo dos últimos 30 anos de regime democrático, começaram a surgir em alguns territórios um novo paradigma do que se costuma chamar de “governança pública”. Nesses locais, as prefeituras, a sociedade civil organizada e as empresas passaram a construir parcerias voltadas à gestão de ações que podem produzir impacto e resultados positivos para o bem comum. Essa perspectiva de aproximação das esferas privada e pública traz consigo o princípio cristão da subsidiariedade.

É possível citar o caso do pequeno município de Pompeia, de 22 mil habitantes, no interior paulista. Um grupo da sociedade civil organizada decidiu construir um planejamento estratégico, imaginando uma visão possível de ser alcançada no centenário da cidade que irá ocorrer em 2038.

No processo de construção desse ideal, surgiu uma pergunta óbvia: como transformar Pompeia para que ela possa estar entre as melhores cidades de pequeno porte para se viver no Brasil? Partindo desta pergunta, os membros do grupo entenderam que os processos de mudança necessários passariam necessariamente pela implementação de políticas públicas. Mais do que isso, seria fundamental um novo modelo de gestão pública capaz de integrar empresas, famílias, igrejas, sociedade civil e o próprio governo municipal. Esse modelo deveria prever instrumentos para implantar projetos, programas e políticas, bem como metodologias de monitoramento e avaliação.

Decidiram, então, que a melhor maneira de orientar Pompeia na direção desejada seria executar um Programa de Capacitação de Membros dos Conselhos Municipais, entendendo que nessas instâncias se encontram cidadãos engajados no bem comum da cidade.

O programa já é realidade há um ano, atendendo a um grupo de 110 pessoas, lideranças empresariais, sociais e políticas da cidade. Com ajuda do curso, o grupo aos poucos descobriu que os Conselhos são o primeiro lugar a ser ocupado para uma efetiva participação democrática e para institucionalização de uma nova cultura política.

O CAMINHO DE UMA NOVA GOVERNANÇA PÚBLICA

Na chamada “nova governança pública” – como a que se adotou na cidade de Pompeia – a sociedade civil não se constitui de cidadãos passivos e estáticos que respondem às provocações da propaganda em ano de eleição. Os mecanismos robóticos das redes sociais, em lugar disso, podem ser instrumentos efetivos para uma participação nas discussões sobre a cidade.

Além disso, o cidadão não é um usuário-cliente de serviços e equipamentos pagos pelos seus impostos. A cidadania vai muito além da relação passiva com o governo municipal como provedor de serviços. Além de exigir eficiência, eficácia e efetividade dos serviços, como se governos fossem empresas, os cidadãos devem participar da formulação e controle das políticas como protagonistas da democracia participativa e representativa.

Em suma, na “nova governança pública”, o cidadão, as famílias, as empresas e as organizações legítimas da sociedade são parceiros das lideranças políticas e ajudam a cuidar da cidade.

Muitas dessas ideias referentes à participação dos cidadãos nos cuidados com as cidades e com o meio ambiente estão contidas na encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, que chama a atenção para a “Casa Comum”, o planeta Terra. O cuidado se inicia exatamente pelos bairros e cidades ondem vivem e atuam os cidadãos. Nesse sentido, tenhamos esperança de que no futuro possam ser mitigados os desastres como o ocorrido em São Sebastião.

* José Mario Brasiliense Carneiro, mestreem Teologia pela Pontifícia Universidade Lateranense, doutor em Administração Pública pela EAESP-FGV e presidente da Oficina Municipal da Escola de Cidadania e Gestão Pública vinculada à Fundação Konrad Adenauer.

** Eder Brito, mestre em Administração Pública Local (Korea University), mestre em Gestão de Políticas Públicas (USP), jornalista (Universidade Metodista) e coordenador de Projetos da Oficina Municipal da Escola de Cidadania e Gestão Pública

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