Para além das respostas emergenciais diante das tragédias climáticas

A edição deste mês do Caderno Laudato si’ – Por uma Ecologia Integral trata sobre as chuvas recordes no Litoral Norte paulista analisando, destacando o que deixou de ser feito para mitigar seus impactos e quais são as iniciativas possíveis para que tais fatos não se repitam

Foto: Governo do Estado de São Paulo

Parecia notícia repetida, mas era uma nova tragédia: em fevereiro, um forte temporal – com o recorde de 682 milímetros de chuvas em 24 horas – ocasionou deslizamentos, desmoronamentos e enchentes no Litoral Norte paulista, provocando a morte de 65 pessoas, a maioria na cidade de São Sebastião (SP). Exatamente um ano antes, em Petrópolis (RJ), os 530 milímetros de chuvas em 24 horas desencadearam o mesmo cenário de caos, levando à morte de 241 pessoas.

Antes dessas duas tragédias, o recorde de chuvas no Brasil havia sido em 1991, em Florianópolis (SC), com 400 milímetros em um dia.

Eventos climáticos extremos têm sido cada vez mais recorrentes não só no Brasil. Um estudo da Organização das Nações Unidas apontou que os desastres relacionados ao clima saltaram de 3.656 eventos, de 1980-1999, para 6.681, de 2000-2019, aumento de 83%.

Ainda que não haja um amplo consenso sobre os fatores que os ocasionam – o aquecimento global é apontado por muitos especialistas em clima como o principal deles –, o fato objetivo é que, como recorda o Papa Francisco na encíclica Laudato si’, “as mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade” (LS 25).

CONSEQUÊNCIA DE UMA RELAÇÃO DESARMÔNICA

Preservar um ambiente íntegro e saudável para todos, conjugando novas capacidades científicas com a dimensão ética de respeito à vida e à dignidade humana, é tarefa do ser humano, conforme consta no Compêndio da Doutrina Social da Igreja (cf. CDSI 465).

Há tempos, porém, se verifica uma desarmonia na relação homem-natureza, como apontou, em 1971, São Paulo VI na carta Octogesima adveniens: “Por motivo da exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano] começa a correr o risco de destruí-la e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação. Não só já o ambiente material se torna uma ameaça permanente, poluições e lixo, novas doenças, poder destruidor absoluto; é mesmo o quadro humano que o homem não consegue dominar, criando assim, para o dia de amanhã, um ambiente global, que poderá tornar-se-lhe insuportável” (no 21).

Na Laudato si’, ao analisar a raiz humana da atual crise ecológica, o Papa Francisco alerta que “a falta de preocupação em medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas […] Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque ‘em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza’” (LS 117).

OS MAIS POBRES E OS INTERESSES ECONÔMICOS

Dos cerca de 4 mil desalojados ou desabrigados após a tragédia em São Sebastião, a maioria é de famílias pobres, que moravam nas proximidades dos morros que se desfizeram e viraram “rios de lama”.

A crise ambiental atinge particularmente os mais pobres, que “vivem nos subúrbios poluídos das cidades em alojamentos casuais ou em aglomerados de casas decadentes e perigosas” (CDSI 482).

Na Laudato si’, o Papa Francisco ressalta que “uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos de- bates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o cla- mor da terra quanto o clamor dos pobres” (LS 49).

Parte desse clamor provém daqueles que vão morar nas encostas e altos dos morros não por opção, mas como última alternativa para ter um lar.

“Se num lugar concreto já se desenvolveram aglomerados caóticos de casas precárias, trata-se primariamente de urbanizar estes bairros, não de erradicar e expulsar os habitantes. Mas, quando os pobres vivem em subúrbios poluídos ou aglomerados perigosos, ‘no caso de ter de se proceder à sua deslocação, para não acrescentar mais sofrimento ao que já padecem, é necessário fornecer-lhes uma adequada e prévia informação, oferecer-lhes alternativas de alojamentos dignos e envolver diretamente os interessados’ [CDSI 482]. Ao mesmo tempo, a criatividade deveria levar à integração dos bairros precários numa cidade acolhedora” (LS 152).

Antes das grandes intervenções humanas no meio ambiente, o Papa Francisco ressalta que deve haver amplo diálogo, em especial com aqueles que vivem em um local: “A participação requer que todos sejam adequadamente informados sobre os vários aspectos e os diferentes riscos e possibilidades, e não se reduza à decisão inicial sobre um projeto, mas implique também ações de controle ou monitoramento constante” (LS 183).

NÃO BASTAM MEDIDAS EMERGENCIAIS

Na encíclica, Francisco também aponta que “a cul- tura ecológica não pode se reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (LS 111).

O Pontífice também pondera que “a tecnociência, bem orientada, pode produzir coisas realmente valiosas para melhorar a qualidade de vida do ser humano […] nos dão um poder tremendo. Ou melhor: dão, àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder econômico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo inteiro. Tende-se a crer que ‘toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores’ (Guardini, R. O fim dos tempos modernos), como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. A verdade é que ‘o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder’ (Guardini, R. Idem)” (LS 103-105).

O Papa recorda, ainda, que “não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS 139).

É nessa perspectiva que publicamos  nesta edição do Caderno Laudato si’ – Por uma Ecologia Integral duas análises sobre a mais recente tragédia no Litoral Norte paulista. Acesse-as abaixo.

Os caminhos possíveis para minimizar e evitar desastres naturais

Tragédia, perigo ignorado e mau uso do poder

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