Projeto Ponto Firme: crochê como aliado na ressocialização de detentos

O estilista Gustavo Silvestre ensina o crochê para detentos em penitenciária paulista; peças produzidas já foram destaque na São Paulo Fashion Week, em exposição na Pinacoteca de São Paulo e em Nova York

Fotos: SAP

Um em cada quatro condenados pela Justiça reincide no crime, conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Situações como essa não passaram indiferentes ao estilista pernambucano Gustavo Silvestre, que reside em São Paulo e em 2015 idealizou o Projeto Ponto Firme, oferecendo aulas de crochê para encarcerados na Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, localizada em Guarulhos (SP). 

Atualmente, 16 homens participam das aulas que acontecem uma vez por semana. O aprendizado, entretanto, se estende para os demais internos, uma vez que eles manifestam o desejo de aprender o novo ofício. 

ENTRE LINHAS 

O primeiro contato de Silvestre com o crochê, com o bordado e com a renda foi na infância, quando via sua mãe e sua avó “crochetando e bordando”. Sua família mantinha a tradição de fazer trabalhos têxteis manuais. “Gosto de imaginar o amor e o tempo que a pessoa gastou para fazer aquele trabalho”, disse. 

O estilista recordou que, no processo da arte com linhas e agulhas – entre um ponto e outro –, formavam-se tapetes, guardanapos, roupas, sousplat e uma infinidade de peças. “Descobri nessa arte uma forma de ter o poder de tecer e conduzir a história com as próprias mãos”, disse, fazendo analogia da vida com o traçar dos pontos nas linhas do crochê. 

CROCHÊ NA PRISÃO 

O projeto inclusivo na penitenciária nasceu do desejo de ajudar essas pessoas a encontrar um ofício, a ocupar o tempo e oferecer possibilidades de aprendizagem e inclusão. Desde 2015, semanalmente, Silvestre vai até a penitenciária onde desenvolve as oficinas de crochê. Desde então, o Ponto Firme já formou mais de 130 pessoas. 

“Acredito que a educação e as artes têm papéis poderosos na transformação pessoal e social, e influenciam diretamente na redução da violência”, diz ele. “Já encontrei alunos que, em liberdade, continuaram a desenvolver o crochê, sustentam suas famílias e continuam aprendendo e fazendo muitos planos”, lembrou. 

O tempo dedicado às aulas contribui para a remissão de pena dos participantes, além de ajudar no desenvolvimento da concentração por meio de uma terapia manual. 

De acordo com a legislação em vigor, quem cumpre regime fechado ou semiaberto pode remir um dia de pena a cada 12 horas de frequência em cursos, caracterizadas por requalificação profissional, como é o caso dessas aulas de crochê. 

DA CELA PARA O MUNDO 

Em 2020, durante a pandemia, o Projeto Ponto Firme foi destaque na São Paulo Fashion Week (SPFW), quando as peças de roupas produzidas pelos detentos desfilaram na maior passarela de moda do Brasil. 

“O destaque na SPFW e também em um evento de moda em Nova York é uma possibilidade de inserir as peças produzidas no cárcere e mostrar o potencial dessas pessoas ao mundo. Hoje, a tecnologia e a agenda cheia nos impedem de ver as pessoas que estão ali no sistema prisional”, disse, enfatizando a necessidade de mais inclusão e empatia pelo próximo. 

Silvestre pretende ampliar o projeto e levá-lo a outras penitenciárias do estado, inclusive para as femininas. “É gratificante ver a esperança deles em construir um novo futuro a partir do que aprendem nas aulas”, destacou. 

APRENDIZADO E NOVA TÉCNICA 

Daniel Tavares, durante seu período de reclusão, descobriu com as aulas de Silvestre uma nova técnica para criar suas peças. Ele reaproveita sacolas de arroz, açúcar, pão, plásticos em geral que iriam para o lixo, para fazer arte. 

“Na pandemia, faltou linha para fazer as peças em crochê e por um período as aulas foram suspensas. Mas sentia a necessidade de ocupar a mente e as mãos, então me veio a ideia de reaproveitar o plástico e, a partir daí, seguir a técnica que me possibilitou criar novas peças em crochê com linha de reaproveitamento de plástico”, afirmou. 

Tavares recorta as sacolas em tiras e, com a mão, estica o plástico e as transforma em linha. “Com a técnica, consigo fazer bolsas e até varal de roupas. Parece algo simples, mas imagina o bem que faz para minha restauração e, ainda, para o meio ambiente”, ressaltou, enquanto ensinava à reportagem o processo de fabricação da linha. 

Tavares explicou que para fazer uma bolsa, ele usa em média 26 sacolas plásticas de 5 quilos de arroz ou outro ingrediente nessa pesagem. “A equipe da penitenciária já separa essas sacolas e me entrega. Na cela, outros companheiros me veem fazendo e, curiosos, querem aprender”, disse, ressaltando que fica feliz em compartilhar a experiência com os demais.

NA PASSARELA 

Fidelison Alves Borges, 43, está na penitenciária desde 2008, e começou as aulas de crochê por incentivo dos companheiros de cela. Ele falou que no início achava estranho ver homens fazendo crochê e que pensava que não conseguiria aprender. 

“Nós estamos aqui por nossos erros e a oportunidade de novas perspectivas aqui dentro é muito bacana para ocupar o tempo, mas, sobretudo, para aprender novos ofícios”, ponderou. 

Borges é um dos participantes que tiveram uma de suas peças na passarela da São Paulo Fashion Week. “Foi uma grata surpresa, fiquei feliz. Nas visitas, vejo como minha família ficou orgulhosa”, disse. 

Fernando Henrique Silva Cesário, 32, enfatizou que, não obstante os erros do passado, quer ressignificar sua vida e seus atos. “No crochê, redescobri um novo ofício e, em cada ponto do crochê que faço, penso na minha filha de 8 anos e nas besteiras que já fiz na vida, e tenho uma certeza: quero sair daqui uma pessoa melhor”, assegurou. 

A ARTE TRANSFORMA 

Igor Rocha é agente penitenciário e ressaltou que na Penitenciária Desembargador Adriano Marrey estão 2,3 mil presos, os quais têm dois grandes anseios: liberdade e família. 

“Independentemente do erro, é unânime o desejo de liberdade e do contato com a família. A transformação do ser humano por meio da arte é imprescindível e necessária. Meu maior sonho é ver mais projetos como o do Silvestre com esse potencial de reabilitação e conscientização sobre o valor e o significado da vida”, finalizou. 

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