Desde quando a Igreja Católica dedica atenção aos mais pobres?

Desde os tempos apostólicos, a Igreja Católica dá especial atenção ao socorro dos mais necessitados (reprodução da internet)

Em 2016, por ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, o Papa Francisco instituiu o Dia Mundial dos Pobres a ser celebrado sempre no 33º Domingo do Tempo Comum – geralmente em novembro, segundo o calendário litúrgico. No entanto, a atenção especial aos mais necessitados não é uma realidade recente na vida da Igreja.

Já nas primeiras comunidades cristãs, como narra o livro dos Atos dos Apóstolos, havia a preocupação com o serviço aos mais necessitados. Um desses exemplos é quando São Pedro pede que fossem escolhidos sete homens “cheios do Espírito e de sabedoria” (At 6,3), que assumissem o serviço de assistência aos pobres. O texto diz, ainda, que os primeiros cristãos “vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um” (At 2,45).

Ao comentar esses textos, o Papa Francisco, na mensagem para o 1º Dia Mundial dos Pobres, em 2017, ressaltou que o evangelista São Lucas não fazia uma retórica quando descreve a prática da partilha na primeira comunidade. “Antes, pelo contrário, com a sua narração, pretende falar aos fiéis de todas as gerações (e, por conseguinte, também à nossa), procurando sustentá-los no seu testemunho e incentivá-los à ação concreta a favor dos mais necessitados”.

O mesmo ensinamento é dado, com igual convicção, pelo Apóstolo São Tiago, usando expressões fortes e incisivas na sua carta. “Ouvi, meus amados irmãos: porventura não escolheu Deus os pobres segundo o mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam? Mas vós desonrais o pobre. (…) De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: ‘Ide em paz, tratai de vos aquecer e matar a fome’, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta” (Tg 2,5-6.14-17).

A exemplo do Mestre

Esses ensinamentos dos discípulos de Jesus têm seu fundamento nas palavras e exemplos de seu próprio mestre, que afirmou: “Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era estrangeiro e me hospedastes; estava nu e me vestistes; adoeci e me visitastes; estive na prisão e me fostes visitar […] O que fizerdes a um destes meus irmãos mais pequeninos é a mim que o fazeis” (cf. Mt 25,34-46).

O Catecismo da Igreja Católica (CIC) recorda as diversas vezes em que os evangelhos reforçam que Deus abençoa aqueles que ajudam os pobres e reprova aqueles que se afastam deles: “Dá ao que te pede e não voltes as costas ao que te pede emprestado” (Mt 5,42). “De graça recebestes, de graça deveis dar” (Mt 10,8). “Jesus Cristo reconhecerá seus eleitos pelo que tiverem feito pelos pobres. Temos o sinal da presença de Cristo quando ‘os pobres são evangelizados’ (Mt 11,5)”, acrescenta o Catecismo, 2443.

Cristãos se dedicam à assistência imediata aos pobres (Foto: Luciney Martins/O SÃO PAULO)

Cristo pobre

Para os discípulos de Jesus Cristo, a pobreza é, antes de tudo, uma vocação a seguir Jesus pobre, que ensina que o Reino de Deus pertence aos pobres e aos pequenos, isto é, aos que o acolheram com um coração humilde. Jesus é enviado para “evangelizar os pobres” (Lc 4,18). Declara-os bem-aventurados, pois “o Reino dos Céus é deles” (Mt 5,3); foi aos “pequenos” que o

Pai se dignou revelar o que permanece escondido aos sábios e aos entendidos. “Jesus compartilha a vida dos pobres desde a manjedoura até a cruz; conhece a fome, a sede e a indigência. Mais ainda: identifica-se com os pobres de todos os tipos e faz do amor ativo para com eles a condição para se entrar em seu Reino” (CIC, 544).

Mas em que consiste essa “pobreza” da qual fala os evangelhos? O Papa Francisco responde a partir do que ensina do Catecismo:

“Significa um coração humilde, que sabe acolher a sua condição de criatura limitada e pecadora, vencendo a tentação de onipotência que cria em nós a ilusão de ser imortal. A pobreza é uma atitude do coração que impede de conceber como objetivo de vida e condição para a felicidade o dinheiro, a carreira e o luxo. Mais, é a pobreza que cria as condições para assumir livremente as responsabilidades pessoais e sociais, não obstante as próprias limitações, confiando na proximidade de Deus e vivendo apoiados pela sua graça. Assim entendida, a pobreza é a medida que permite avaliar o uso correto dos bens materiais e também viver de modo não egoísta nem possessivo os laços e os afetos (cf. CIC, 2545)”.

Estilo de vida

Em 2 mil anos de história, foram muitos os homens e mulheres que, de vários modos, ofereceram a sua vida ao serviço dos pobres, que, como sublinha o Catecismo, “não se estende apenas à pobreza material, mas também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa” (CIC, 2444).

“Não pensemos nos pobres apenas como destinatários de uma boa obra de voluntariado, que se pratica uma vez por semana, ou, menos ainda, de gestos improvisados de boa vontade para pôr a consciência em paz. Estas experiências, embora válidas e úteis a fim de sensibilizar para as necessidades de tantos irmãos e para as injustiças que frequentemente são a sua causa, deveriam abrir a um verdadeiro encontro com os pobres e dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida”, enfatizou o Papa Francisco, recordando as palavras de São João Crisóstomo: “Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir”.

São Leão Magno, em um de seus sermões, no século V, afirmou que “nenhuma devoção dos fiéis agrada mais ao Senhor do que aquela dedicada aos seus pobres, e, onde se encontra a preocupação da misericórdia, ele reconhece a imagem de sua própria bondade”.

No discurso de abertura da 2ª Sessão do Concílio Vaticano II, em 1963, São Paulo VI afirmou que todos os pobres, necessitados, aflitos, famintos, assim como toda a humanidade que sofre e chora, pertencem à Igreja por “direito evangélico” e, por isso, obrigam à opção fundamental por eles.

COMPROMISSO NO COMBATE ÀS CAUSAS DA POBREZA

Papa Francisco faz visita visita surpresa a comunidade carente na periferia de Roma, em 2015 (Foto: Arquivo/Vatican Media)

A Doutrina da Igreja também ensina que uma das formas concretas de ajudar os pobres é a busca da superação das realidades que causam a pobreza e a desigualdade. O próprio Catecismo da Igreja Católica sublinha que os problemas socioeconômicos só podem ser resolvidos com o auxílio de todas as formas de solidariedade: solidariedade dos pobres entre si, dos ricos e dos pobres, dos trabalhadores entre si, dos empregadores e dos empregados na empresa, solidariedade entre as nações e entre os povos. “A solidariedade internacional é uma exigência de ordem moral. Em parte, é da solidariedade que depende a paz mundial” (CIC, 1941).

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São João Crisóstomo dizia que não deixar os pobres participar dos próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. “É preciso satisfazer acima de tudo as exigências da justiça, para que não ofereçamos como dom da caridade aquilo que já é devido por justiça.”

Dignidade da pessoa

A esse respeito, o Papa emérito Bento XVI escreveu, na encíclica Caritas in veritate (2009), que “a dignidade da pessoa e as exigências da justiça requerem, sobretudo hoje, que as opções econômicas não façam aumentar, de forma excessiva e moralmente inaceitável, as diferenças de riqueza e que se continue a perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos ou da sua manutenção”.

O Papa emérito acrescentou que o aumento sistemático das desigualdades entre grupos sociais no interior de um mesmo país e entre as populações dos diversos países, ou seja, o aumento maciço da pobreza em sentido relativo, “tende não só a minar a coesão social – e, por este caminho, põe em risco a democracia –, mas tem também um impacto negativo no plano econômico com a progressiva corrosão do ‘capital social’, isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis em qualquer convivência civil”.

Caridade e política

O mesmo apelo faz o Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti (2020), quando salienta que é preciso haver um ordenamento jurídico, político e econômico mundial que “incremente e guie a colaboração internacional para o desenvolvimento solidário de todos os povos”.

“Com efeito, um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no ‘campo da caridade mais ampla, a caridade política’. Trata-se de avançar para uma ordem social e política, cuja alma seja a caridade social”, exortou, recordando as palavras de São Paulo VI, que definia a política como uma das expressões mais elevadas de caridade.

Algumas pessoas consagram a vida a Deus para servir os mais pobres (Foto: Luciney Martins/O SÃO PAULO)

COMO AJUDAR OS POBRES?

São muitas as maneiras pelas quais os cristãos podem ajudar aos mais pobres. A primeira delas é reconhecendo-os como irmão e, consequentemente, o próprio Cristo que sofre. Nesse sentido, a caridade pode ser exercida de forma individual, por meio da esmola, gesto recomendado pelo próprio Cristo nos evangelhos, sendo, inclusive, uma das práticas penitenciais da Quaresma, como forma de exercitar o desapego, combater o egoísmo e cultivar a generosidade.

Também é possível colaborar materialmente ou por meio do trabalho voluntário com inúmeras iniciativas de caridade organizadas pela Igreja, por meio das suas inúmeras obras assistenciais, pastorais e projetos voltados para pessoas em situação de rua, famílias carentes, migrantes, refugiados e muitas outras pessoas em condição de vulnerabilidade social.

Também existem iniciativas protagonizadas por grupos de amigos ou membros de comunidades paroquiais, que se reúnem para atender a situações específicas de pobreza. Um desses exemplos é o da associação Cor Unum, que atua em diversas frentes, como a distribuição de alimentos e roupas, atendimento de saúde, assistência jurídica, social e psicológica, capacitação profissional.

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Microcrédito

Há, ainda, iniciativas como o Instituto CrediPaz, que oferece microcrédito solidário a famílias carentes, fundos provenientes de doações de instituições parceiras como a Caritas Arquidiocesana de São Paulo. Já foram diretamente apoiados cerca de 5 mil associados, impactando as vidas de mais de 28 mil dependentes por meio de aproximadamente R$ 13 milhões emprestados.

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Consagrados

São muitos os homens e mulheres que, a exemplo dos grandes santos do passado, sentem o chamado de Deus para consagrar a vida a serviço dos mais pobres em congregações religiosas, institutos de vida consagrada e associações de fiéis, como a Missão Belém, Toca de Assis, Aliança de Misericórdia, Fraternidade Voz dos Pobres, Fraternidade O Caminho, entre outras.

Além disso, é possível colaborar com esses apostolados por meio de serviços voluntários, como é o caso das psicólogas voluntárias que atendem acolhidos da Missão Belém.

Famílias

Antes de todas essas iniciativas, o primeiro lugar onde deve ser exercitada a prática da caridade com os mais pobres é a família, a “Igreja Doméstica”. O Catecismo da Igreja salienta que a família deve viver de maneira que seus membros aprendam a cuidar e a se responsabilizar pelos jovens e pelos velhos, pelos doentes ou deficientes e pelos pobres.

“São numerosas as famílias que, em certos momentos, não são capazes de proporcionar essa ajuda. Cabe, então, a outras pessoas, a outras famílias e, subsidiariamente, à sociedade prover às suas necessidades: ‘A religião pura e sem mácula diante de Deus, nosso Pai, consiste nisto: visitar os órfãos e as viúvas em suas tribulações e guardar-se livre da corrupção do mundo’” (Tg 1,27), destaca o Catecismo, 2208.

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