Não nos faltam problemas e desafios no mundo do trabalho. Enfrentamos frequentemente questões estruturais que transcendem à vontade e ao esforço de cada um. Contudo, a postura pessoal com a qual vivemos essas situações pode fazer uma grande diferença…
Na vida, frequentemente me sinto atraído e convidado por relações que me fascinam e que tomam, então, a forma de tarefas que, se atendidas com cuidado, desenvolvem a relação e, se evitadas, a esvaziam. Apaixonar-se, casar e constituir família são o exemplo mais claro dessa dinâmica; mas o mesmo poderia ser dito de todo o “apaixonar-se” pelo qual minha vida é habitada e animada.
Por outro lado, há casos em que sou convocado por uma tarefa, por algo a ser feito para que as necessidades básicas sejam satisfeitas. “Trabalho” em sentido estrito, a profissão, as tarefas que o “emprego” obriga. Mas, neste caso, acontece que essas tarefas – para não serem a condenação a uma experiência de “prisão” que só espera os momentos em que se pode suspendê-la – me chamam para um relacionamento, ganham sentido em um relacionamento. De quem vem essa tarefa? O que você precisa? Com quem posso ou devo fazer isso? Como aquela pessoa que é mais competente do que eu ou que tem um ponto de vista diferente do meu faria isso?
Em suma, minha vida parece ser descrita por essa tendência um tanto quanto circular entre situações em que um relacionamento interessante me traz tarefas, e outras em que algumas tarefas que tenho que (ou quero) fazer, me levam – por assim dizer – aos braços de um relacionamento. Trabalho e relacionamentos, então. Pão e amor, diria o bom e velho Freud.
O local de trabalho pode ser fascinante. Sou consultor de treinamento e desenvolvimento organizacional e, por isso, passo meus dias em organizações, entre as pessoas que trabalham juntas, engajadas em treinamentos, gestão de mudanças, projetos de coaching. Sou “apaixonado” por empresas, organizações e acho que elas não são os lugares banais ou “práticos” que muitas vezes nos dizem, mas lugares densos, dramáticos, humanamente vibrantes com histórias, paixões, perguntas.
Na realidade destes tempos absurdos e fascinantes que vivemos, por meio das fraturas que somos convidados a olhar sem fugir à dor e ao medo, nesta cultura em que parece que nos perguntamos se não seria possível deixar de trabalhar… O trabalho nos convida a uma experiência que precisamos viver. A experiência pela qual o engajamento com a realidade, muitas vezes árido e necessário, flui e ganha sentido a partir de uma relação em que descubro meu “eu” ao acolher um “você”.
Diálogo e desejo. Então, interessa-nos aquela forma particular de conversa que chamamos de diálogo, quando a conversa se torna o evento de um encontro real que muda a perspectiva. O diálogo não é uma predisposição genérica para ouvir o outro, mas é o método de que precisamos para que o trabalho possa ser verdadeiramente intersubjetivo e relacional; é a aceitação da diversidade do outro como dom. Não para “concordar”, mas para descobrir, por meio do outro, muitas coisas que acreditava já conhecer. Saber dialogar, perguntar as nossas necessidades e ouvir as do outro, nos permite realmente descobrir e vivenciar o trabalho como uma oportunidade imperdível.
Segundo o filósofo Martin Buber, existem duas formas de lidar com outra pessoa. A que ele chama de “eu/isso”, em que o outro é confrontado com base no que eu já sei, onde procuro prever suas palavras e ações para poder de alguma forma “administrá-lo”; ou a relação “eu/tu”, em que realmente acolho o outro, o escuto verdadeiramente.
Neste segundo caso, o diálogo acontece. O outro é uma oportunidade para sairmos da “bolha”, da “câmara de eco” em que só ouvimos a nossa voz. Mas não devemos esconder de nós mesmos que essa experiência requer uma disposição para enfrentar uma certa “dor”, uma certa “mortificação” em que renunciamos a definir o outro de acordo com nosso ponto de vista. Mas se deixarmos isso acontecer, podemos realmente “conhecer” alguém (a vida é real quando é um encontro, disse Buber). E podemos descobrir mais sobre quem somos e – juntos uns com os outros – criar algo novo e inovador. Podemos receber e dar o que todos nós, mesmo na vida organizacional, precisamos: reconhecimento. Não tanto no senti- do de “gratificação”, mas verdadeiramente de “reconhecimento”. Ouvir o outro me permite ouvir melhor a minha própria voz, entender melhor o meu ponto de vista, descobrir o meu desejo.
A vida nas organizações e o trabalho são realmente uma oportunidade de descobrir quem eu sou. Mas essa oportunidade não depende tanto do “poder” do sujeito, mas da possibilidade de conhecer uma relação, para onde olhar e ser olhado. Onde ouvir uma pergunta e poder formular outra. Onde descobrir, graças ao encontro com a diversidade do outro, o meu desejo. O sujeito torna-se protagonista se passar da lógica da “necessidade” para a do “desejo”. Da lógica carente, em que – justamente – estou na organização porque preciso de um emprego, de um salário e, por isso, aceito seguir orientações; à lógica desejante, em que abro novas possibilidades, aprendo, inovo, desenho, depois, gero algo novo.
Para descobrir meu desejo, para que eu não seja apenas um intérprete do desejo do outro, é necessário encontrar um tu que me reconheça, se interesse por mim, me escute, me pergunte, me queira (bem). O encontro evoca o sujeito que (então) se torna protagonista. As organizações que praticam o diálogo (e não suas versões cosméticas) certamente se expõem a um sofrimento – o diálogo não é simples e previsível –, mas abrem espaços para envolvimento e inovação.
Aceitar o novo. Estamos, de fato, num momento de mudanças dramáticas. Muitos de nós experimentam que seu “papel”, o que já aprenderam, fizeram e construíram parece não interessar mais, não ser suficiente. Mas isso também aponta para uma possibilidade esplêndida e terrível – como os gregos resumiram na palavra deinòs (formidável). Aceitar que precisamos de encontros para que algo realmente aconteça. Se ficarmos parados, à espera de sermos “admirados” ou “ouvidos”, só nos restará testemunhar o progressivo desmoronamento diante do novo. Mas se “sairmos”, indo ao encontro, se aceitarmos a nossa vulnerabilidade, a nossa falta como recurso para perguntar e ouvir… dias interessantes nos esperam pela frente.
Se aceitarmos nos “deixar ir”, seremos capazes de ver coisas novas. A mudança é como o fundo da agulha, que era uma porta de Jerusalém (real, não metafórica), pela qual só se poderia entrar abrindo mão de algo da própria bagagem, porque era muito estreita… E, ao fazer isso, podemos entrar em um espaço novo e fascinante.
*Trecho da exposição feita na mesa-redonda “O mundo precisa de sujeitos: o emergir de um rosto no ambiente de trabalho”, do 11º FÓRUM NACIONAL DA COMPANHIA DAS OBRAS (CdO): “O sentido do trabalho” (São Paulo, 2023)