A evolução biológica e a Cruz de Cristo

Em uma publicação recente (“Acerca de uma obra sobre Ciência e Fé”), comentávamos a dificuldade de se conciliar uma visão evolutiva darwiniana do mundo e a fé cristã. Falamos que isso ressalta o valor da fé (parafraseando Hebreus 11,1, a fé é a certeza em um mundo inerentemente ambíguo, onde os dados são insuficientes para uma resolução exclusivamente racional), na centralidade da encarnação e da cruz.

Como disse o Papa Paulo VI em uma Audiência geral de 02/04/1969:

Quase poderíamos ver no Concílio uma intenção de tornar aceitável e amável o cristianismo, um cristianismo indulgente e aberto . . .  Isto é verdade. Mas prestemos atenção. O Concílio não esqueceu que a Cruz está no centro do Cristianismo: “Que não se torne inútil a Cruz de Cristo” (1Cor 1,17).

Nota-se assim uma tensão entre o progresso e o gênio humanos, frutos de uma criação boa e de uma contínua providência, e a condição humana, finita, pecaminosa, marcada pelo orgulho e autossuficiência. Isso vale para a ciência e para a tecnologia como um todo, mas nosso foco aqui é a teoria da evolução. Por um lado, como intuída pelo Cardeal Ravasi, a evolução segue um padrão misterioso que reflete o desígnio divino para o ser humano e o resto do mundo criado, culminando em “novos céus e nova terra”. Por outro lado, o excesso de crueldade e a ausência de um propósito claro no mundo natural fazem muitos cristãos suspeitar de tal teoria, que parece justificar o sem-sentido dos mecanismos naturais. Isso torna expressões que fazem parte da tradição cristã, como “lei natural”, “direito natural”, “teologia natural”, como passíveis de dúvida.

Mas a teoria da evolução deve ser avaliada em termos de seus próprios méritos científicos, e não em termos de sensibilidades que repousam sobre interpretações pouco inspiradas da tradição. É pela fé que podemos vislumbrar a ação divina por detrás de fatos naturais, atestados pela ciência, em si tão opacos e ambíguos, por angustiante que seja tal fé. Da mesma forma que a contemplação do Crucificado nos conduz à glória da ressurreição, a contemplação do mal e da falta de sentido no mundo solicita de nós novas interpretações da mesma tradição. Como já dito anteriormente, isso se torna deveras urgente no âmbito da bioética, onde tecnologias compatíveis com a teoria da evolução dão margem a manipulações do ser humano que violam sua dignidade e promovem novas formas de eugenia.

O dom e a gratuidade da vida são abafados pela ânsia de controle do destino humano. É contra tais interpretações redutoras da teoria da evolução que uma vez mais nos recordamos da pertinência da cruz de Cristo, ou seja, que nossa apreciação de tudo o que de bom a ciência e a tecnologia nos oferece não nos torne cegos e indiferentes diante do egoísmo humano. É certo que a teoria da evolução serviu a muitas formas de ateísmo nos últimos 150 anos, mas o testemunho autêntico não é negá-la e sim apreciá-la aos olhos da fé cruciforme.

Eduardo Rodrigues Cruz é professor titular do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP, tendo graus avançados em Física e Teologia; publicou extensamente sobre o relacionamento entre ciências naturais e fé cristã.

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