A legalidade da entrega voluntária de uma criança para adoção

Nas últimas semanas, por causa da violação do sigilo do caso de entrega para adoção de uma criança, nascida de uma atriz famosa que fora vítima de estupro, muito se debateu sobre isto: o que envolve a decisão de uma mãe que voluntariamente entrega seu próprio filho para adoção. 

Surgiram diversos questionamentos a respeito e uma enorme confusão entre essa entrega voluntária e o crime de abandono de incapaz. Valem, nesse sentido, alguns esclarecimentos para melhor compreensão do debate. 

Conhecida como entrega legal, a entrega da criança pela mãe que não deseje ou não possa ficar com seu filho, por qualquer que seja o motivo, é um ato amparado por lei e vem sendo tratado a partir de uma série de procedimentos em âmbito judicial, como forma de amparo à mãe e à criança. 

Trata-se, acima de tudo, de um direito da mãe para a consequente proteção da vida da criança e se vincula ao planejamento familiar, à paternidade responsável e à dignidade da pessoa humana previstos na nossa Constituição federal (Art. 226, § 7o) e no Estatuto da Criança e do Adolescente. 

Para o exercício desse direito de entrega voluntária para adoção, a mulher, mãe ou gestante pode manifestar seu interesse antes ou após o nascimento de seu filho, perante a Justiça da Infância e da Juventude. 

Após essa manifestação, a mulher é ouvida por uma equipe especializada, interprofissional, a qual apresenta um relatório à autoridade judiciária, levando em consideração o estado emocional, gestacional e puerperal da mãe nesse processo. Com esse relatório, a mulher é encaminhada, mediante sua concordância, para a rede pública de saúde e para um acompanhamento psicológico e de assistência social. Após o nascimento da criança, a mãe, ouvindo, se houver, o pai registral ou indicado, pode reiterar a manifestação de sua vontade pela entrega para adoção, garantindo sigilo sobre o nascimento e sobre eventual entrega, ou pode desistir dessa entrega e se arrepender em até dez dias da sentença judicial que determinar a extinção do poder familiar e os efeitos da entrega para adoção. Em qualquer caso, é necessário o acompanhamento psicossocial da mãe por meses após essa decisão (conforme consta no Estatuto da Criança e do Adolescente). 

Muitas vezes, a dúvida sobre manter ou não a criança nasce de uma situação de miséria, violência ou estupro. Nesse sentido, o sigilo é fundamental para proteção da própria mãe contra o preconceito e a pressão social e, mais do que tudo, para a proteção da vida do menor, com garantia de seus direitos e, especialmente, de sua dignidade. A adoção atribui à criança novos vínculos familiares, emocionais e patrimoniais, sujeitando a criança a um novo poder familiar, com extinção do poder familiar e dos vínculos anteriores. 

Ao contrário da entrega legal, o abandono de incapaz, muito citado nesse debate, é crime e não segue ritos ou processos judiciais. Não tem guarida ou amparo legal. Um exemplo é um caso noticiado há alguns meses do abandono de um bebê prematuro encontrado em uma caixa de papelão. Nesse caso, o cuidado da criança ainda seria de responsabilidade e de guarda da mãe, que deveria defendê-la de quaisquer riscos à saúde, à dignidade e à vida. O ato de abandono sujeita, portanto, a mãe à pena de prisão (detenção ou reclusão, conforme a gravidade do ato). Em caso de morte do bebê, a mãe pode permanecer em reclusão de 4 a 12 anos. 

Muito se vê nessas atitudes e nesse debate uma enorme falta de conhecimento sobre direitos e deveres em matéria familiar e infantojuvenil. Muito desse tabu é gerado em torno de um temor pela exposição ou pelo julgamento social. E ainda se encontram mães que, por falta de informação, temem ser presas se comparecerem à Justiça para a entrega de seus filhos para adoção. É importante entender que deve prevalecer a vida, sob qualquer circunstância, e que o Estado deve estar a serviço de todos para a proteção da família e, especialmente, da vida da criança. O amparo legal da entrega para adoção garante a vida acima de qualquer circunstância. 

Crisleine Yamaji é advogada, doutora em Direito Civil e professora de Direito Privado. E-mail: direitosedeveresosaopaulo@gmail.com 

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