A solidariedade do Estado de Direito brasileiro e a fraternidade social de Fratelli tutti

Entre os objetivos de nosso Estado Democrático de Direito, consta a construção de uma sociedade solidária. A solidariedade social é objetivo e princípio de nosso Estado, só que, nos dias de hoje, vem pautada por um contentamento com uma solidariedade programática, abstrata, formal, restrita ao que não incomoda. A assunção de responsabilidades e da comunhão mantêm nosso conforto e nossos muros.  

Não há solidariedade social onde as pessoas deixam de ser vistas e de ver o outro por seu valor primário. Não há solidariedade onde os direitos humanos de uns vale mais do que para outros; na verdade, direitos humanos esses outros não têm. Não há solidariedade social onde a manutenção da miséria convém para alguns que usam da miséria do outro para enriquecer, explorando o outro com a informalidade de ausência de direitos sociais e previdenciários, o pagamento de salários de fome e o desespero da sobrevivência. 

Ademais, não há solidariedade na divisão. A sociedade brasileira passou a apreciar a política da divisão. A desconfiança mútua tornou-se combustível para a eleição, para a defesa do armamentismo da população, para um clima constante e insuportável de conflito, com um mergulho em um mar de individualismos que somados, apesar de toda boa vontade, não formam uma casa comum. 

Passamos a nos contentar, tomados pelo desânimo e pela falta de esperança, com uma sociedade do “nós” contra “eles”, dos donos da razão que se contrapõem e que se perdem em um descarte mútuo, constante, com perda de sua identidade de comunidade.

Se no nosso Estado Democrático brasileiro, formalmente, não há mais espaço para esse tipo de divisionismo, podemos imaginar em nossa comunidade cristã. Há tempos deixamos de viver uma vida comum, característica da comunidade cristã em uma igreja una, santa e católica. 

Nesse contexto, coloca-se em evidência a proposta da encíclica Fratelli tutti de uma “vida ao sabor do Evangelho”. Viver o Cristianismo em sociedade, com uma construção de uma fraternidade social que não se contenta com todo esse divisionismo, com os muros que afastam a pobreza e deixam os pobres à uma distância suficientemente segura para blindar os olhos e o coração, que se contenta com a frieza de um individualismo sufocante e de uma esmola insuficiente para viver. Não basta à conformação da nossa solidariedade constitucional ou da fraternidade social proposta pelo Papa um assistencialismo de balcão, que até despacha recursos em recursos escassos a criar dependência, mas afasta dos olhos a miséria e não cria soluções de longo prazo.

Toda essa proposta trazida pela Fratelli tutti é mais do que um discurso moral; é instrumento que deve permear uma leitura eficaz da solidariedade no Estado Democrático de Direito, com um amor político apropriado à visão evangélica; ou seja, uma política de valorização efetiva da pessoa humana, com trabalho remunerado para uma sobrevivência digna, verdadeira esperança de futuro, uma articulação política que resulte em um desenvolvimento humano e social efetivo. 

A abertura amorosa ao outro não deve permitir que ninguém seja descartado ou descartável e deve ser um motor capaz de gerar alternativas novas e criativas para o enfrentamento corajoso dos nossos problemas sociais atuais, do individual ao coletivo, em busca do bem comum e do valor do ser humano que há muito deixaram de ser prioridade em nosso Estado.

Crisleine Yamaji é advogada, doutora em Direito Civil e professora de Direito Privado. E-mail: direitosedeveresosaopaulo@gmail.com

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