Direito à cultura sem cultura e as polêmicas da Lei Rouanet

Recentes polêmicas sobre a aplicação dos recursos de incentivos fiscais da Lei Rouanet em vultosos cachês de apresentações musicais de dois artistas conhecidos nos levaram a refletir não somente sobre a qualidade dos projetos de natureza cultural que temos patrocinado, mas, também, sobre a cultura que temos sustentado e, por consequência, sobre o direito à cultura que temos garantido em nosso Estado brasileiro.

Como se sabe, a Lei Rouanet é uma lei federal de incentivo à cultura. Estabelece incentivos fiscais para que membros do setor privado, pessoas físicas ou jurídicas (empresas) apoiem a cultura brasileira na forma de uma renúncia fiscal do Estado; por meio dela, o próprio Estado deixa de recolher uma parte de seus tributos para que sejam destinados ao financiamento de espetáculos, exposições e apresentações musicais, frutos do nosso patrimônio e realidade cultural.

Muito embora o processo de seleção e aprovação desses projetos seja bastante criterioso, nos termos da lei parece haver um desconforto amplo da população com a arte, a música e o entretenimento que estamos valorizando com o direcionamento de recursos públicos. Estamos diante de um dilema cultural, e esse dilema diz respeito à cultura que cultivamos e ao processo educativo que tem levado a uma inculturação contraditória e superficial das novas gerações.

Ao mesmo tempo em que aspiramos por uma cultura que expresse valores clássicos do verdadeiro, bom e belo, nossa cultura parece ter virado uma questão de opinião, do agradável aos sentimentos próprios de um grupo bem articulado com as tecnologias e dos gostos transitórios. O belo passa a ser conformado a preferências pessoais e supérfluas, muitas vezes secularizadas e desprovidas de qualquer tipo de virtude ou de aspecto ético ou moral.

Cultivamos a cultura do imediato, do apreço das massas expresso em redes sociais, que gira em torno de um marketing materialista e passageiro. Nada mais na cultura parece conter um profundo significado ou propósito, harmônico socialmente com o que trazemos de nossas tradições familiares e históricas. E, assim, toda essa banalidade, relatividade particular e momentaneidade da cultura acabam por conformar o próprio direito à cultura garantido e apoiado em seu aspecto pouco substantivo.

O direito à cultura, que deveria ser expressão constitucional de direitos humanos e fundamentais e resultado de um processo educativo adequado de inculturação das pessoas, portador de valores e virtudes, acaba por se limitar a fabricar um sistema tecnocrata de arranjos legislativos, discricionários e convenientes a grupos de interesses da indústria do consumo.

Vivemos, portanto, em um momento de colapso desse direito à cultura, resultado talvez do pouco valor que temos dado à nossa própria cultura, que, cada vez mais, deixa de ser a promoção da beleza e do bem comum, a valorização de padrões éticos e morais, para se tornar manifestação vulgar de interesses particulares, utilitaristas e vazios de sentido. A instrumentalização da cultura abriu um espaço à efetivação de um direito à cultura sem cultura. E esse contexto cria incômodo na população. A cultura e o direito à cultura no Brasil urgem por revalorização.

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