Misericórdia e sinodalidade para o Terceiro Milênio

Em 2015, na Bula Misericordiae vultus de proclamação do Ano da Misericórdia, o Papa Francisco reafirmou a missão primeira da Igreja de “introduzir a todos no grande mistério da misericórdia de Deus […] como o centro da Revelação de Jesus Cristo […] Do coração da Trindade, do íntimo mais profundo do mistério de Deus, brota e flui incessantemente o grande rio da misericórdia. Esta fonte nunca poderá esgotar-se […]” (MV 25; cf. Novo millennio ineunte, NMI, 1). É uma alusão a Ap 22,1: “um rio de água da vida, límpido como cristal, que brotava do trono de Deus e do Cordeiro”. Está na linha de “Liturgia de Fonte” (1980) de Jean Corbon (cap. III): “A Cruz é a primeira teofania da Fonte e, por tê-la contemplado com seus próprios olhos de carne, João poderá mais tarde penetrar seu mistério na última visão do Apocalipse (22,1s). Quando ‘um dos soldados, com a lança, traspassou o lado’ de Jesus, ‘imediatamente brotou sangue e água’ (Jo 19,34) […] A partir ‘daquele dia’, ‘há uma fonte aberta…’ (Zc 13,1)”.

No mesmo ano, o Papa também indicou que “o caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja do Terceiro Milênio” (Discurso, 17/10/2015), e já se adianta o Sínodo universal. Tal sentença programática nos situa num horizonte temporal de longo prazo em que se vai formar a figura sinodal da Igreja. Nessa perspectiva temporal, misericórdia e sinodalidade convergem para o discernimento comunitário do “tempo da misericórdia”, pois a dimensão do tempo, no plano divino da salvação, está intimamente ligada ao mistério da misericórdia. Daí a importância do Grande Jubileu de 2000 e sua mensagem de avançar para águas mais profundas: “Diante da Igreja abre-se um novo milênio como um vasto oceano onde aventurar-se com a ajuda de Cristo” (NMI 58); é uma “profecia do futuro” que inclui “o arco mais amplo de tempo desde o Concílio Vaticano II até o Grande Jubileu” (NMI 3). O Jubileu “deixou aberto para nós um futuro de esperança” (NMI 59). 

Na vasta perspectiva temporal e profética do Terceiro Milênio (ainda no início), a misericórdia e a sinodalidade, à luz do Espírito, poderão guiar a pastoral da Igreja até uma profecia do futuro na perspectiva da misericórdia, cujo enraizamento se encontra no próprio Jubileu, com a canonização de Santa Faustina Kowalska e a instituição do Domingo da Divina Misericórdia no dia da Ressurreição (oitava pascal), “um fato que está situado no centro do mistério do tempo” (NMI 35). Surgem, então, uma hermenêutica e uma pedagogia com base no “tempo da misericórdia”, à maneira de uma teologia tridimensional da misericórdia, como expressão de um “tempo do culto e da cultura da misericórdia” (tempo-culto-cultura). O tempo da misericórdia caracteriza-se como o tempo do anúncio do mistério da misericórdia; afinal, a “misericórdia infinita do Pai” é o conteúdo do querigma proposto pelo Papa Francisco e transversal à Evangelii gaudium

O mistério da misericórdia de Deus exaltado e celebrado na Páscoa de Jesus e no Domingo da Misericórdia é o “memorial” que – como manifestação da glória da Trindade Santa – derrama a misericórdia desde sua Fonte: é a água do Espírito que jorra do coração (cf. Jo 4,14.24) e torna fecunda a evangelização, tarefa que aconselha a criação de Centros Culturais da Misericórdia no estilo sinodal. Mas respeitando os tempos dos processos antes da conquista de espaços: “a evangelização exige ter presente o horizonte [temporal], adotar os processos possíveis e a estrada longa” (EG 222-225). 

Marcelo Cypriano Motta, advogado, contemplado com a Medalha “São Paulo Apóstolo” 2018, atua na “Promoção da Cultura da Misericórdia” no Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

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