O resultado do 1º turno das eleições reavivou o discurso dos “dois brasis”, um petista, outro antipetista. Mas a divisão geográfica reflete uma divisão cultural entre grupos com grande dificuldade de entender e respeitar argumentos e valores do antagonista – e aqui está o maior problema. Interesses e posições diferentes são inevitáveis na política, mas, quando não existe uma compreensão mútua, são impossíveis o diálogo, tão pedido pelo Papa Francisco, e o consenso.
Os rótulos “progressista”, “conservador”, “direita” e “esquerda”, se bem aplicados, ajudam a referir-se aos grupos em confronto. Mas, frequentemente, se tornam uma abstração ideológica para condenar o adversário, sem se dar ao trabalho de entender seus desejos e motivações.
Dizer que ricos votam em um candidato e pobres em outro é tentador, mas não resolve a equação. Os ricos são muito poucos para pesar na balança eleitoral. O fato é que pobres e classe média se distribuem ao longo do espectro político.
Invocar o argumento que “o povo não sabe votar” é arrogante e presunçoso para os dois lados, considerando que os candidatos estão quase empatados. Melhor dizer que os “políticos não sabem exatamente o que o povo quer”, e com isso cada posição acerta em algumas coisas e erra em outras.
Assim temos, por exemplo, um Nordeste onde os mais pobres há muito não percebiam a vida melhorar com o progresso econômico e deseja o fortalecimento da função social do Estado. Do outro lado, um Centro-Oeste, onde parcelas significativas da população se beneficiaram com o agronegócio, defendendo políticas pró-mercado e temerosas de ameaças à propriedade privada ou sanções ambientais e sociais que diminuam a produtividade econômica.
Os valores tradicionais, como a família e o trabalho digno, mesmo que mal remunerado, parecem sem sentido e até hipócritas para quem se sente cerceado em sua autonomia e seu desejo de realização, ou que olha para o trabalho sob a ótica da iníqua distribuição de renda brasileira.
Já o tratamento igualitário para ambos os sexos ou as políticas afirmativas para as minorias parecem perigosas ameaças ideológicas para os que sentem que a formação moral de seus filhos está em risco ou que se percebem como maioria ultrajada (e, em nossa sociedade, temos que reconhecer que, para a maioria, a dignidade da pessoa é frequentemente desrespeitada).
Alguns veem no aborto ameaças à vida que está por nascer, outros veem, numa sociedade armada e diante de uma polícia agressiva, ameaças à vida do pobre. O fato é que a vida é sagrada e nos dois casos existem ameaças a serem combatidas e cuidados a serem tomados.
Todas essas situações podem ser instrumentalizadas nas campanhas eleitorais – e quem fizer uma propaganda política mais eficiente tende a vencer o pleito. A construção do bem comum, contudo, vai acontecendo na medida em que todos esses aspectos vão sendo pouco a pouco contemplados, que as visões ideológicas vão sendo substituídas por programas realistas que atendem às demandas de uns sem perder de vista o que há de justo nos reclamos dos outros.
Gente bem-intencionada, graças a Deus, não falta no mundo. Gente capaz de dar realmente um testemunho inteligente do amor já é mais difícil. Bem mais desafiador ser capaz de testemunhar um “amor político”, como convida Francisco (Fratelli tutti, FT 180ss), viver aquele “amor social” que não se deixa levar pelo medo, a que aludiu São João Paulo II (Redemptor hominis, RH 15- 16). Mas é o amor que nos permite compreender o outro, e os cristãos são chamados a testemunhar tal amor nesse momento de tão alta polarização.
Francisco Borba Ribeiro Neto é coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.
Corajosas palavras do prof. Borba Neto. Faço delas as minhas também. Parabéns.
Este texto cairia bem nos lábios dos sofistas gregos! Quanta necessidade de aceitação! Desejo profundo de parecer estar acima do debate. Em outro patamar: mais elevado! Distante do comezinho “vuco-vuco” da classe não acadêmica. Comparar aborto com posse de armas? E olha que não tenho arma alguma! Não advogo em causa própria. Questões já tratadas em encíclicas papais e condenadas por elas, aqui aparecem apenas como uma posição política possível, que deve ser entendidas e respeitadas! Bravo!!! Nada como o fala mansa e azeitada para transformar um mal objetivo e de matéria grave (teologia moral) em só mais uma posição política a ser “entendida e respeitada”. Bravo 2X!