Como dissemos no artigo anterior (“A amizade a solidão” – ed. 3352 – 30/06/2021), a falta do hábito de refletir sobre o que se vive, primeiramente consigo mesmo e depois com os outros que vivem próximos de nós na comunidade, na família, no trabalho ou na escola, leva à aridez e à falta de “experiência de vida” que têm como consequência uma dificuldade crescente de comunicação. Desta decorre a solidão, que é uma marca registrada dos tempos modernos. Tal condição, por sua vez, leva a um medo cada vez maior dos outros e à desconfiança nos relacionamentos, ao ceticismo e ao niilismo. Não vivendo uma “experiência de vida rica”, a pessoa tem mais dificuldades de encontrar pontos de contato com a experiência dos outros.
Entretanto, por que se tornou quase obsoleto gastar tempo para refletir sobre a própria vida? Não é por acaso que as escolas interromperam o ensino de Filosofia aos jovens. Refletir para quê? Por quê? Não é comum a experiência de que, quando buscamos refletir sobre algo que acontece, só aumentam a confusão e o desgaste nos relacionamentos? Quantas brigas, apenas porque nos colocamos em diálogo… Muito brevemente, podemos dizer que a cultura moderna, sobretudo no mundo ocidental, começou a desvalorizar a busca em comum do que é belo, bom e verdadeiro, que eram os valores basilares da cultura clássica (dizendo, entre outras coisas, que são valores relativos e individuais). No lugar desses valores, a cultura atual começou a dar valor ao que é útil, e sobretudo útil para o indivíduo. Essa visão de mundo foi propagada pela Inglaterra, em particular, com o Império Britânico e a decorrente Revolução Industrial – gerando uma visão de mundo que filosoficamente foi cunhada de “utilitarismo inglês”. O valor das coisas e das pessoas foi depositado na sua capacidade de ser útil e de produzir alguma riqueza material. Este modo de ver o mundo invadiu e determinou, progressivamente, os relacionamentos humanos.
Na coleção “Fragmentos póstumos”, de Nietzsche, encontra-se um texto em que ele descreve bem a posição niilista e a descrença no ser humano que busca apenas o que é útil para si. Essa forma de se relacionar, denuncia Nietzsche, se traduz invariavelmente numa forma egoísta e possessiva de relação com o outro: “Os homens sempre entenderam mal o amor: acreditam, em amor, que são desinteressados, desejando o bem de outro ser, muitas vezes em detrimento de si mesmos; mas em troca querem possuir o outro ser …”. E ainda: “O amor é um […] sutil parasitismo, o perigoso e indelicado aninhar-se de uma alma dentro de outra alma – às vezes até dentro da carne… à custa, ai de mim, do ‘hóspede’! Que prejuízo tem o homem, como está tão pouco ‘interessado’! Todos os afetos e paixões querem ter razão – e quão distante está o afeto da esperta vantagem do egoísmo!”.
A descrença nos relacionamentos acabou por moldar a mentalidade das pessoas e determinar o senso comum do mundo atual globalizado. Uma sociedade em que se valoriza a conquista pessoal para benefício próprio abriu caminho para uma crescente incapacidade de se comunicar e consequente solidão; e a necessária fuga para o prazer imediato e o alívio da angústia. Fez todos acreditarem que, quanto mais rica fosse a sociedade ou o indivíduo, mais prazer poderia conquistar e mais feliz seria, estabelecendo uma relação lógica e pressupostamente positiva, entre prazer e felicidade.
É certo que o dinheiro pode proporcionar mais prazer, mas a verdadeira amizade não pode ser comprada, pois depende da afeição livre do outro. Curiosamente, existe um número crescente de pesquisas realizadas no campo da economia para entender melhor a relação entre riqueza e felicidade que vem mostrando não ser verdadeira a crença de que há uma relação direta entre ambas. Esse será o tema do próximo artigo.
Ana Lydia Sawaya é doutora em Nutrição pela Universidade de Cambridge. Foi pesquisadora visitante do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e é conselheira do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.