Teço aqui algumas impressões de uma primeira leitura da encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco, a partir da experiência pela qual todos passamos da pandemia. Como o próprio Francisco afirma, o novo coronavírus não provocou, com a crise sanitária, novas crises; ele agudizou os problemas de uma “sociedade doente”. Não passarei tais problemas em revista, alguns notórios, outros sutis, outros ainda desconhecidos ou invisibilizados.
Em sua complexidade, abrangendo esferas humanas tão diversificadas, o Papa evidencia: tudo está interligado, somos todos interdependentes. Poderíamos, então, afirmar que seu denominador comum é um déficit de fraternidade – “O individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer” – afirma Francisco.
Na encíclica, o Papa explica a fraternidade a partir da visita de São Francisco ao sultão Malik-al-Kamil, demostrando a grandeza de um amor desejoso de abraçar a todos, “submisso a toda criatura humana por amor de Deus”, como ordenava a seus discípulos. Para os cristãos, o princípio da fraternidade é simples: Deus é Pai de todos os seres humanos; por conseguinte, somos todos irmãos uns dos outros. Princípio tão cristalino, mas de muitas e profundas consequências, tratadas ao longo de toda a encíclica.
Como chave de leitura, o Papa propõe a Parábola do Bom Samaritano – texto cristão cujo ensinamento ele crê que possa ser partilhado por todas as pessoas de boa vontade –, de cujo tesouro o Pontífice tira “coisas novas e velhas”, esmiuçando-a, ressignificando-a e atualizando-a para os dias de hoje.
A fraternidade concretiza-se no caminho da humanidade com as atitudes de “olhar” e “cuidar” do samaritano.
Se a indiferença para com os que sofrem, os excluídos e descartados da sociedade, é um drama da contemporaneidade, somos interpelados a voltar-lhes o olhar, para além de todas as barreiras e diferenças. Chiara Lubich diria: sair à procura dos inúmeros rostos do Cristo que clama “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, clamor por vezes surdo no ensurdecedor frenesi da vida moderna.
Cuidar pode ser uma declinação do amor fraterno, verbo tão rico de significado muitas vezes empregado por Francisco. Nos tempos da pandemia, assistimos a inúmeros testemunhos de cuidado fraterno: de quem o faz por profissão e se desdobrou em situações amiúde de sobrecarga, de quem exerce ofícios muitas vezes invisíveis, mas indispensáveis, dos pesquisadores de vacinas e medicamentos, e especialmente de tantas pessoas que voluntária e generosamente deram víveres, produtos de higiene e dinheiro, mas, sobretudo, deram seu tempo, deram a si mesmas. “A solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que … é, ‘em grande parte, cuidar da fragilidade’”, afirma Francisco.
Há um tipo de cuidado que é chamado “assistencial”, sempre necessário e benfazejo. Mas há também um cuidado que é “estrutural e estruturante”, aquele voltado a mudar “as estruturas de pecado” da sociedade. O Papa dedica amplo espaço a isso, tratando de economia, política, educação, comunicação…
Penso haver aqui uma tarefa que cabe especialmente aos cristãos leigos e a quem mais se compromete com a fraternidade humana: traduzir adequadamente esse conceito para os vários campos da vida em sociedade. Refiro-me, por exemplo, ao estudo referencial de Antonio Maria Baggio sobre a fraternidade como categoria política e jurídica, bem como aos educadores que aceitaram o convite do Pontífice ao Pacto Educativo Global, e aos jovens economistas que pensam numa “economia mais justa, inclusiva e sustentável”, a Economia de Francisco.
Decerto as impressões do leitor enriqueceriam muitíssimo esses sucintos comentários, levando a uma compreensão do documento mais completa e fraterna.
Klaus Brüschke é membro do Movimento dos Focolares, ex-publisher da Editora Cidade Nova, articulista e integrante do projeto do Instituto Universitário Sophia na América Latina e Caribe.